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Generalidades

Generalidades

01
Set23

O legado dos jornais (locais)

Curiosidades


Vagueando

Quando somos jovens o tempo escapa-se com uma velocidade estonteante, os estudos, as namoradas, as festas, não nos deixam apreciar nada sobre os locais onde vivemos.

Os velhos, nessa altura eram segundo a nossa perspetiva, uns chatos, quando falavam começavam sempre com a frase -no meu tempo não era nada disto, isto agora é uma pouca-vergonha.

Depois vem a família, o trabalho e nada muda, bem pelo contrário o tempo já não se escapa, pura e simplesmente parece não existir. Os locais onde vivemos são os mesmos mas transformaram-se, acrescentaram história à sua existência, apagando os sinais do passado que se perde à medida que os mais velhos desaparecem.

Quando me reformei, comecei a prestar mais atenção a um jardim próximo da minha casa, cujo projeto, da autoria do arquiteto Raul Lino, o transformou num dos mais belos miradouros que conheço. No local, não existe nada que o ligue a este arquiteto, nem tão pouco existe uma placa com a sua história resumida.

Vai daí, resolvi pesquisar no Jornal de Sintra o que se escreveu sobre este jardim/miradouro. A pesquisa resultou num post que coloquei aqui em 09 de Abril de 2022 sob o título o Jardim da Vigia.

Durante estas pesquisas fui recolhendo outras informações que, não se ligando com o jardim, achei curiosas pelo que resolvi partilhar hoje duas destas notas. A primeira é um cartoon publicado no jornal em 31 de Maio de 1953 e que reproduzo abaixo A linha de Sintra foi inaugurada em 1887, pelo que este cartoon foi publicado 66 anos depois, eu ainda não era nascido, mas o turismo para Sintra já seria uma realidade.

Excursionistas Sintra 31 05 1953 jornal 16318.jpg

Não vou contar aqui a história da Linha de Sintra, apenas vou referir que não foi através desta linha que o primeiro comboio chegou a Sintra.

O primeiro comboio, denominado Larmanjat , chegou a Sintra, em 1873, passando por Ranholas e quer este, quer os que vieram com a construção da Linha de Sintra acabaram por influenciar a história das queijadas de Sintra, nomeadamente as da Sapa.

A outra nota curiosa, que publico abaixo, tem a ver com uma notícia deste jornal em 25 de Dezembro de 1954 e que se refere a um homem que seguia de bicicleta e acabou atropelado por um avião.

Colhido por um avião Jornal 160325 - 25 12 1954.j

Isto aconteceu porque a estrada antiga que ligava Sintra a Pero Pinheiro, atravessava a pista da atual Base Aérea nº 1 e era justamente conhecida por Estrada da Base ou Estrada da Granja, porque esta Instituição Militar está implantada no local conhecido por Granja do Marquês.

Na foto do Goggle que deixo abaixo é bem visível a estrada que atravessava a pista e que liguei com uma linha vermelha a parte que entretanto desapareceu.

BA1 (2).jpg

 

15
Jun23

O Caminho


Vagueando

Comecei a andar por aquele caminho que não sabia para onde ia. O nevoeiro cerrado não deixava perceber em que direção seguia, tinha a noção dos pontos cardeais mas não tinha nenhuma referência que me permitisse identifica-los, era como se tivesse na mão uma bússola desorientada na presença de um íman.

Contudo, simpatizava com aquele caminho, talvez até tivesse carinho por ele, ainda que racionalmente não existissem razões para tal.

Sentia a sua beleza sem a ver, sentia a sua sinuosidade sem a compreender, sentia que subia ou descia através do maior ou menor esforço para caminhar e sentia que devia continuar. O comum dos mortais dar-se-ia como perdido mas eu não estava, afinal nem sabia para onde seguia aquele caminho e também não fazia a mínima ideia para onde queria ir.

Quando os meus pés, único sensor que me ligava à realidade, perdiam a sensação de pisar terra e pedra, passando a tatear um tapete húmido e fofo, sabia que me tinha desviado do caminho e entrado numa floresta. Aí parava e procurava regressar ao caminho que me queria levar não sei onde.

O caminho era abraçado por copas das árvores que não via e pelo nevoeiro que também não me deixava ver os meus pés, mas seguia-o na esperança de encontrar o que não sabia ou com medo de encontrar coisa nenhuma e ficar ali, no caminho ou fora dele.

Caminhei, caminhei, caminhei, sei lá porquanto tempo, também não me interessava o tempo, nem tinha forma de o medir, apenas sabia, através da pouca luz que atravessava aquele espesso nevoeiro, que era dia. O caminho seguia algures não sei por onde e eu seguia para lado nenhum (1).

Fiquei curioso com isto do lado nenhum, como materializar o lado nenhum. Tentei imaginar como o fotografaria, como me sentiria eu ao lado do lado nenhum. Finalmente um bom motivo para continuar, agora tinha um objetivo, encontrar o lado nenhum.

Continuei então, de vez enquanto o vento sacudia as copas das às árvores que aliviavam ruidosamente as gotículas de água que se tinham acumulado nas suas folhas e que sem dó nem piedade, caiam em cima de mim. O vento parecia forte, espaçadamente tão forte com rajadas furiosas. Como era possível sacudir as árvores com tanta violência e deixar o nevoeiro tão calmo a envolver tudo e mais alguma coisa?

Não compreendia.

Era tão estranho que não sabia se estava num ponto alto, onde o nevoeiro gosta de se fixar com maior regularidade ou se ele, nevoeiro, desta vez, tivesse descido tão baixo até ao meu caminho apenas para me atrapalhar ou quem sabe, me ajudar. Não obstante as dificuldades, continuava porque aquele caminho me guiava e de certo modo dava-me tranquilidade, afinal todos os caminhos vão dar a Roma, mas antes de lá chegar, chegam a outros lados, quem sabe se ao lado nenhum. O curioso é que este caminho não se encontrava com outros caminhos, nem sequer uma vereda, que me obrigasse a tomar uma decisão de continuar ou de o abandonar, não tinha nada que enganar, como se eu não me estivesse, quase de certeza, a enganar-me a mim mesmo ao seguir aquele caminho.

Afinal o caminho faz-se caminhando e para a frente é que é caminho.

Sentia cheiros que não conseguia identificar, mas os que identificava permitiam-me saber que aquilo à volta era terra húmida, estava habitua a ter água em abundância. Mas não ouvia água a correr, era como se não existissem rios ou riachos a terra absorvia toda a água que por ali caísse, exceto a que era despejada em cima de mim, pelas árvores em fúria com o vento que as sacudia. Ouvi aqueles chocalhos usados pelo gado nas pastagens. Este som tão tranquilizante, parecia-me longe ou então era perto mas estava abafado pelo nevoeiro e desvirtuado pelo vento. Podia tentar seguir o som na esperança que o cão pastor me farejasse e me conduzisse a alguém. Desculpei-me a mim mesmo, nenhum cão me farejaria, o vento, o nevoeiro, quiçá a distância o impediria de sentir o meu cheiro. Talvez, no fundo, no fundo, não quisesse encontrar mesmo ninguém e seguir o (meu) caminho.

Continuei, sentia agora o vento mais forte e percebi que as árvores teriam ficado para trás, já não recebia salpicos e o vento era mais forte, estava em campo aberto sem o ver, maldito nevoeiro porque não te vais embora. A paisagem que não via assumia-se como fantasmagórica no meu imaginário, mas a roupa começava a secar com a ajuda da brutalidade das rajadas de vento que me dificultavam a progressão no caminho. O caminho seguia e eu seguia-o, como um crente em Deus, mas sem esperança no que quer que fosse, apenas e só com o desejo de continuar.

A dado momento o vento, ainda que forte deixou de se manifestar em rajadas, era mais quente, mais aconchegante não fosse o pó que trazia consigo e que se me colava no rosto, começava a ficar exausto, mas não parava, sempre com o pensamento de que chegaria a algum lado, talvez ao lado nenhum. Estou a sonhar, tenho que acordar, acabar com isto, lavar a cara, já não suporto este pó colado ao rosto que me impede de ver, como se o nevoeiro não bastasse. Mas qual quê, não era sonho era realidade, o nevoeiro e o vento não mentiam, sentia-os e bem.

Seitei-me no chão pedregoso e seco, senti o cheiro do mar, que me reconfortou, fechei os olhos para o imaginar, foi como se tivesse posto os óculos da realidade virtual, vi o mar e praia.

Abri os olhos, o nevoeiro desaparecera, à minha frente tinha uma mulher que me observava, perguntei-lhe o nome, respondeu Mariana.

Demos as mãos, seguimos os dois o caminho, que ainda estamos a caminhar, até que a morte nos separe e ainda não encontramos o lado nenhum. Desde esse dia, encontramos sim, lado a lado, muitos e bons lugares, por todos os lados. 

(Título de um livro espantoso da autora Júlia Navarro e cuja história explica o que é ser de lado nenhum)

21
Jul22

Um conto ou um Desconto


Vagueando

Aquele Conto era filho de mãe escritora e de pai matemático. Podia ter herdado o gosto da mãe pela cultura e/ou o rigor científico do pai. Mas não, a anarquia foi sempre a sua filosofia de vida, com laivos de debochado.

Talvez devido ao seu espírito anárquico e acima de tudo por ser um debochado, era alvo do interesse público, melhor da coscuvilhice pública. É que isto do interesse público tem o seu interesse, porque perante um mesmo copo de água há sempre quem o veja meio, meio cheio ou meio vazio. Ou seja servia para todos os gostos e embirrações e gostos (quiçá as embirrações também) não se discutem, exceto quando se lava roupa suja nas redes sociais.

Daí que um escritor, manhoso mas minimamente honesto, ao contrário dos jornalistas de tabloides que seguiam e engendravam casos à volta do Conto, interessou-se por escrever um conto sobre o Conto, pelo que lançou mãos à obra.

Como um conto já o é, teve que fazer de conta que o conto sobre o Conto era isso mesmo, um conto. Contudo, o dito conto sobre o Conto, mais não era que um biografia.

A infância, as diabruras constantes demonstravam que o Conto era, autenticamente, um estarrabazido (palavra que a minha avó usava para designar este tipo de sujeitos), um sem eira nem beira.

A adolescência não modificou o Conto, para melhor entenda-se. Sem rumo, sem norte, ao sabor do vento, mesmo quando este não soprava, as suas atitudes e posturas, andavam no limbo entre o mau comportamento e os pequenos delitos.

Já na idade adulta, esmerou a sua faceta criminosa, começou a partir corações, quer por via dos muitos amores desfeitos por traições, que as mulheres perdoavam, quer por via das burlas (amorosas – amor para que te quero) com que as brindava, em suma, um charlatão/engatatão.

O Conto vivia à conta dos contos que escramalhava (termo algarvio que designa espalhar/desarrumar) às muitas mulheres que caiam na esparrela de se deixar enrolar, entregando-lhe as suas poupanças, contra a promessa de que o Conto faria bons negócios com o mesmo, enfim o típico conto do vigário.

Quando o Conto viu, em grande destaque no escaparate de uma livraria um livro sobre a sua malfadada vida, resolveu descontar tudo e, vai daí, sob pseudónimo, lançou um desconto, ou seja a sua versão, aldrabada mas cor-de-rosa da sua vida, incluindo a amorosa, mais a versão aldrabada, do sucesso da suposta vida de empresário.

O curioso nestes dois contos é que se provou que após a morte do Conto, a versão biográfica e honesta do conto, morreu também, enquanto a versão aldrabada continua a fazer sucesso, indo já 25ª Edição.

A mentira faz parte daquilo a que outrora chamávamos a voz da razão.

Existe mesmo uma FdAdCA – Fundação de Admiradores do Conto Aldrabado, criada por si com os fundos obtidos via trafulhice e que conta com uma legião de seguidores, ainda mais pantomineiros do que o Conto.

Esta legião, assegura a continuidade da sua obra, usando as velhas técnicas, não deixa de ser curioso como a inovação não faz falta nenhuma para este fim, ainda que se possa recorrer a outras ferramentas mais modernas, mas agora para poderem beneficiar financeiramente das suas práticas, usam apenas moeda virtual.

17
Jul22

Preciso de calor humano porque calor já eu tenho


Vagueando

P3063645[28440].JPG

Foto da  minha autoria e que serviu de inspiração para este conto, onde se mistura ficção com alguma realidade. 

 Quantos silêncios serão necessários para que me escutem? Era o sentimento daquela casa.

As casas não ouvem nem falam porque não têm voz. Não tendo uma coisa nem outra contam histórias, quer sobre si próprias, quer sobre a vida lá dentro. Não são diferentes do mais comum dos mortais que, como as casas, comunicam mesmo quando não falam.

Havia sido construída num outeiro no Baixo Alentejo, a cerca de 9 km de Belmeque, a aldeia mais perto. As paredes eram em alvenaria de pedra aparelhada, telhado de duas águas forrado a telha de canudo, suportado por um vigamento em madeira, estruturado em asna com pendural.

Dispunha de 4 portas, 3 viradas a Sul e uma a Norte. A porta principal, a mais usada, dava acesso à cozinha; os alimentos, a maioria vindos de cultivo próprio, entravam logo ali para serem cozinhados sem ser necessário sujar o resto da casa. Outra porta facilitava o acesso ao corredor que atravessava toda a casa, terminando na porta norte. Este corredor era o distribuidor de acesso a todas as outras divisões e servia de ar condicionado no Verão, bastava abrir as duas portas para ter uma corrente de ar fresca. A terceira porta dava serventia a um pequeno curral onde se acolhia a criação , uma mula e 3 ovelhas. A casa dispunha ainda, do lado norte, de um eirado com cisterna destinado a no Inverno, recolher água para consumo e no Verão para secar alfarrobas, amêndoas, milho, bolota e para jantares ao ar livre e ainda para dormir mais fresco, tendo as estrelas como teto.

As brisas frescas e suaves na Primavera e Verão, transportavam os cheiros do campo que eram condimentados com o canto das cigarras e dos grilos. Tinha sol todo o ano, sentia-se como estivesse a ser grelhada, excepto quando as nuvens cerravam fileiras.

Miguel era filho da roda mas isso nunca o impediu de ser um homem feliz. Fixou-se no Alentejo, na casa da sua mulher Emília, com quem casou em 1931, casamento que lhe deu duas filhas, Isilda e Conceição. Era um homem magro, alto, esbelto, moreno, poderia ter sido manequim. Era assim, não porque se coibisse de comer ou por fazer dietas vegans, era assim porque caminhava muito.

As longas pernas eram o seu meio de transporte, aliás, não havia outro.

Era afoito, não tinha medos, nem sequer da morte. Contudo, afligia-o não saber o que era estar morto e de que forma saberia que tinha morrido. Não sabia ler mas era um poeta, poeta popular. Fazia versos espontâneos a mangar dos amigos que se metiam com ele e, com especial prazer quando os netos lhe pediam. Não sabia nada de música mas cantava. Não sabia tocar instrumentos, mas acompanhava as suas canções com um instrumento improvisado que transportava sempre consigo, o sovaco.

Extraía sons colocando a sua mão direita debaixo do sovaco esquerdo, colocando este braço e antebraço em “V” movimentava-o para baixo e para cima, de forma ritmada, ao mesmo tempo que a mão direita controlava a saída de ar debaixo do sovaco, provocada por este movimento. Os sons eram um misto de trompete com corneta, mas também muito parecidos com os sons que os sofredores de flatulência emitem nos momentos de maior aperto. Eram estes últimos sons que faziam delirar os seus netinhos que pediam que os repetisse vezes sem fim, às horas das refeições.

As refeições significavam convívio familiar. Eram os únicos momentos em que não se estava a trabalhar e serviam também a Miguel para contemplar a estrutura de madeira que suportava aquele telhado com um equilíbrio geométrico tão perfeito que parecia ser impossível aguentar todo aquele peso de forma tão simples e harmoniosa.

O seu animal de estimação não era um cão nem um gato. Era uma mula de grande porte, musculada pelo trabalho de lavoura mas excelentemente cuidada, sempre limpa e escovada e livre, já que pastava no campo completamente solta desde de tenra idade. Nem parecia uma besta de trabalho mas sim um daqueles cavalos levados a concursos de beleza. Seguia o dono como um cão, via nele um Deus protector, não se deixava levar por ninguém. Quando o Miguel parava ela parava imediatamente e assim ficava, sem estar amarrada, à espera do dono. Miguel chamava-lhe a minha cãozinha.

A vida de Miguel parecia um daqueles gráficos de linhas, com variações em “V” muito pronunciadas. Cresceu no meio de muitas crianças nas mesmas circunstâncias, fez amizades mas não as conservou, não havia como. Os telefones eram poucos, os carteiros não chegavam ao campo. Longe era o lugar onde todos os seus companheiros de infância se tinham instalado.

Foi no Algarve serrano, e longe do Allgarve das praias, que começou a trabalhar, a cozer fornos . Este trabalho implicava o corte de mato, silvados e apanha de lenha seca que era transportada às costas ou em carroças, consoante a distância até ao forno, em quantidade suficiente para o manter a arder, no mínimo, durante dois dias e duas noites. Mesmo depois de casar e já com as filhas nascidas continuou este trabalho, o que implicava estar fora de casa semanas seguidas. Só para chegar ao forno e regressar a casa, gastava quatro dias a caminhar.

Mais tarde, começou a dedicar-se à agricultura de subsistência nos campos que tinha à volta de casa e  aumentou a produção de griséus , tremoços, as alfarrobas e amêndoas começavam a render bom dinheiro, que era escondido em frascos de vidro de café solúvel e nas latas que continham chocolate em pó para misturar com água ou leite. Para o esconder de eventuais amigos do alheio era embrulhado dentro de pequenas bolsas de pano, costuradas pela sua mulher, que depois eram metidas no meio de feijão e grão, guardado nestas embalagens.

Foi nessa altura que a linha gráfica representativa da felicidade e de algum conforto, subiu ao pico máximo, ainda que a casa estivesse mais vazia, as suas filhas tinham já rumado a Lisboa.

Na altura de férias juntavam-se todos naquela casa. Uma vez que o seu trabalho era logo ali, à volta da casa, tinha tempo para, à volta da mesa, contar as suas histórias, cantar e tocar para os seus netos ao mesmo tempo que saboreava as refeições com os sabores e odores que nos são hoje vendidos como gourmet.

A morte prematura da sua filha Isilda veio trazer-lhe muitas angústias. Pela primeira vez pensou na sua própria morte. Nada voltou a ser como dantes, mesmo que a família restante fosse aparecendo frequentemente, a única coisa que ainda lhe dava algum amparo às suas longas pernas era a sua Emília. Aquelas pernas que calcorreavam longas veredas, durante dias recusavam-se agora a andar. A maleita não era nos membros inferiores, era psicológica. Foi nessa altura que todas as suas dúvidas sobre o que era a morte o começaram a atormentar. Comentava com a mulher que a morte, era o corpo frio, era não aparecer, era não conseguir comunicar, era não ser visto, era estar deitado sem se mexer, mas como é que se sabe que já morremos?

Nunca obtinha resposta, excepto da sua mulher que dizia; mechas para a conversa.

A morte da Emília, aos 89 anos, embora aceitável do ponto de vista do que era a esperança média de vida, deixou-o sozinho de novo, tal como quando nasceu. Disseram-lhe que a Emília tinha morrido, mas quem lhe disse a ela que estava morta? Toda a gente lhe dizia que estar morto era o contrário de estar vivo. Mas esse não era o seu problema. O seu problema é que ninguém lhe dizia o que era o contrário de estar vivo. Queria ter a certeza, que seria ele a saber e a comunicar, pelo menos a si, que estaria morto e que estando morto, tudo se desligava, tudo se apagava, que nenhum dos meus sensores ficava activo como a caixa negra de um avião que depois de um acidente, fica a emitir durante 30 dias impulsos sonoros na frequência 37,5Hz se estiver submersa e é capaz de resistir, durante 30 minutos a temperaturas de 1.100 graus Celsius.

Falou com o médico que assinou a certidão de óbito da mulher. Este explicou-lhe que ela não sabia que tinha morrido. Fora ele como médico, de acordo com a sua experiência, a saber que ela tinha morrido porque não respirava.

Miguel, não ficou convencido, pensou logo nas galinhas, corta-se-lhes a cabeça, não respiram, mas estão vivas.

O que é facto é que a casa também se ressentiu desta falta de calor humano e foi-se degradando.

Dois meses depois, ao jantar, Miguel passeava o seu olhar ao redor da cozinha. Cansado, fixou-se no telhado que tanto apreciava. A casa sentiu-se lisonjeada ao ser olhada e ficou na expectativa de que ele reparasse nas telhas partidas que deixavam passar a água, apodrecendo a sua estrutura de madeira. Ele que, noutros tempos achara a estrutura em asna tão bela e elegante, agora não lhe ligava absolutamente nada. Se lhe caísse em cima era uma sorte, pensava. Foi dormir.

No dia seguinte acordou triste para não variar. Abriu a porta, viu o Sol a começar a subir no horizonte, as andorinhas a esvoaçar à volta dos ninhos feitos nos beirais da casa, ouviu os grilos e as cigarras. Sem rumo, nem ânimo, começou a andar, as pernas pareciam que pesavam mais do que o costume, apenas o cheiro a eucalipto, e a brisa na cara que trazia também um ligeiro odor a poejo, o animou um pouco. Quando deu por ele estava na aldeia de Belmeque.

Viu um carro funerário, costumava vê-lo a passar quando ia à aldeia, tal como se fosse um autocarro de passageiros, mas sem horário nem paragens definidas. Voltou para casa, quando chegou, viu um carro à porta, era um dos seus netos, com a namorada. Com uma alegria imensa, disse logo: – Ficam cá esta noite, vou já tratar da janta . — Sim avô, fazemos-te companhia.

Falou sobre as suas dúvidas ao neto. Este fez umas pesquisas na internet e explicou-lhe tudo o que ele queria saber, mas sabia que não tinha a resposta certa para lhe dar. Miguel ouviu e ficou a saber o que já sabia. Ninguém toma conhecimento que morre. O neto continuou. Quando não temos pulsação nem respiração por algum tempo ocorre a morte cerebral, ainda que alguns dos nossos órgãos fiquem temporariamente activos. É por isso que é possível transplantar órgãos de mortos para outras pessoas que deles necessitam.

Os médicos e estudiosos têm relatado casos de pessoas que estiveram muito mal, referindo que estas quando recuperam descrevem sensações de paz e ausência de dor; de viajar dentro de um túnel, de ver o seu próprio corpo fora dele, de relatar com precisão os actos médicos efectuados no seu corpo, de ver familiares já falecidos.

Ficou a saber mais umas coisas, mas não o que lhe interessava.

No dia seguinte, despediu-se do neto, com um abraço muito forte sem sentir esforço ou pressão, pese embora estivesse a apertá-lo muito.

Voltou para a cozinha para arrumar a louça do pequeno-almoço, mas desistiu e sentou-se.

Olhou de novo para o tecto.

Virou-se para a casa e disse-lhe; – Sabes, estou como tu, velho, frio, desamparado. Abracei o meu neto com todas as minhas forças e não o senti, parecia que estava a apertar uma esponja.

Tenho a comunicar-te que morreste, sim sou eu, o teto, o telhado, que te estou a comunicar que morreste. Estás sem calor humano, tal como eu, pese embora o calor abrasador lá fora. – Se calhar tens razão. Nasci sem pais, talvez volte a nascer outra vez, rodeado de calor humano, porque calor sempre tive. Mas agora tenho medo, medo de não aguentar uma eventual infância feliz.

20
Ago21

Já fui árvore e árvore ainda sou


Vagueando

P7280473.JPG

Não nasci assim, torta. Entortaram-me.

Não nasci assim seca, secaram-me.

Não era deste tamanho, cresci.

Não fui como estou, mas agora sou.

Não era daqui, viajei para cá.

Não era árvore, era semente.

Já não sou senciente, nem doente, nem sequer estou dormente, morri, não sendo gente. Morri, pasme-se de pé, assim, como me ainda vê, depois de muito retorcida pelo vento.

Estou morta, na paisagem tratam-me por resistente.

Estou sem vida como se vê, dou vivas à vida que me vê.

Sou um peso morto, apoio o peso da vida de outras espécies que se agarram a mim, como se eu, morta, fosse a sua tábua de salvação.

Sou abraçada por caminhantes, que não se podem agora abraçar, fotografada por curiosidade, quiçá por me acharem bela, observada por muitos, idolatrada por paisagistas, pintada por artistas, que me chamam natureza morta.

Já não sinto o vento a retorcer-me nem abanar-me, já não sinto o frio a gelar-me, nem a chuva a molhar-me, apenas percebo que sou torta, depois de morta, quem se importa!

12
Jun21

A morte fascina-me


Vagueando

Costuma dizer-se que a única coisa cem por cento certa na vida de um ser humano é a de que um dia morre. Sendo verdade também é certo que antes de isso acontecer pagaremos, direta ou indiretamente, impostos.

Não venho desmentir nada disto, antes pelo contrário, é verdade, é uma verdade de La Palisse, confirmo por experiência própria, para já, a parte que se refere ao pagamento de impostos.

O que me fascina na morte, razão pela qual resolvi vaguear pelo tema é saber como sabe o morto que morreu.

Quem está habilitado a prestar-lhe essa informação? Que documento lhe é entregue como prova de morte (que eu saiba há por aí muita gente a ter que fazer prova de vida)? Como pode o morto aceder à vida eterna se não tem nenhuma prova que ateste que está morto?

Com as falcatruas que se fazem por aí, todos os dias, quem garante que não anda por aí malta a aceder, de forma ilegal, à vida eterna?

E depois?

O que faz o morto com o certificado? Como é que morto encara todas aquelas cerimónias fúnebres? Como vai organizar-se a partir daqui? Terá algum apoio para mudar de residência?

Recorremos aos especialistas para saber mais sobre determinados temas. Mas onde estão os especialistas nesta matéria? Não conheço nenhum "necrolojólogo", nem nenhum espeleólogo mental que tenha explorado e explicado esta falha grave.

O Mundo encontrou uma forma de datar os acontecimentos, diferenciando os anos em AC e DC. Será que o morto também poderá datar os acontecimentos em AM –Antes de Morto e em DM – Depois de Morto?

Será que o morto terá direito à sua nova existência, chamemos-lhe assim, a um CCM – Cartão de Cidadão Morto? E que data constará neste cartão, a sua data de nascimento e/ou a data da sua morte, ou só esta última para dar início à contagem dos anos DM? Também se lhe averba a sua condição de morto, tal como o estado civil, no CC que estamos habituados e habilitados a usar?

O autocarro funerário anda todos os dias por ruas e estradas, sem paragens certas e sem horário definido, sem cronograma dos seus percursos. Embora o ponto de partida seja diversificado, o seu destino é sempre o mesmo e onde saem todos os seus passageiros. Não tem revisor, nem fiscal, não aceita passe social, não aceita bilhetes pré-comprados nem de ida e volta, a entrada e a saída é feita sempre pela porta de trás, só leva um passageiro de cada vez, que vai deitado e não sabe para onde vai, mas também não pode dizer que sabe que não quer ir por ali.

Quando o povo diz que temos que mudar de vida estará, porventura, a referir-se a mudá-la de Antes de Morto para Depois de Morto?

Será que única certeza que um morto tem é que nunca vai saber que morreu?

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