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Foto da minha autoria e que serviu de inspiração para este conto, onde se mistura ficção com alguma realidade.
Quantos silêncios serão necessários para que me escutem? Era o sentimento daquela casa.
As casas não ouvem nem falam porque não têm voz. Não tendo uma coisa nem outra contam histórias, quer sobre si próprias, quer sobre a vida lá dentro. Não são diferentes do mais comum dos mortais que, como as casas, comunicam mesmo quando não falam.
Havia sido construída num outeiro no Baixo Alentejo, a cerca de 9 km de Belmeque, a aldeia mais perto. As paredes eram em alvenaria de pedra aparelhada, telhado de duas águas forrado a telha de canudo, suportado por um vigamento em madeira, estruturado em asna com pendural.
Dispunha de 4 portas, 3 viradas a Sul e uma a Norte. A porta principal, a mais usada, dava acesso à cozinha; os alimentos, a maioria vindos de cultivo próprio, entravam logo ali para serem cozinhados sem ser necessário sujar o resto da casa. Outra porta facilitava o acesso ao corredor que atravessava toda a casa, terminando na porta norte. Este corredor era o distribuidor de acesso a todas as outras divisões e servia de ar condicionado no Verão, bastava abrir as duas portas para ter uma corrente de ar fresca. A terceira porta dava serventia a um pequeno curral onde se acolhia a criação , uma mula e 3 ovelhas. A casa dispunha ainda, do lado norte, de um eirado com cisterna destinado a no Inverno, recolher água para consumo e no Verão para secar alfarrobas, amêndoas, milho, bolota e para jantares ao ar livre e ainda para dormir mais fresco, tendo as estrelas como teto.
As brisas frescas e suaves na Primavera e Verão, transportavam os cheiros do campo que eram condimentados com o canto das cigarras e dos grilos. Tinha sol todo o ano, sentia-se como estivesse a ser grelhada, excepto quando as nuvens cerravam fileiras.
Miguel era filho da roda mas isso nunca o impediu de ser um homem feliz. Fixou-se no Alentejo, na casa da sua mulher Emília, com quem casou em 1931, casamento que lhe deu duas filhas, Isilda e Conceição. Era um homem magro, alto, esbelto, moreno, poderia ter sido manequim. Era assim, não porque se coibisse de comer ou por fazer dietas vegans, era assim porque caminhava muito.
As longas pernas eram o seu meio de transporte, aliás, não havia outro.
Era afoito, não tinha medos, nem sequer da morte. Contudo, afligia-o não saber o que era estar morto e de que forma saberia que tinha morrido. Não sabia ler mas era um poeta, poeta popular. Fazia versos espontâneos a mangar dos amigos que se metiam com ele e, com especial prazer quando os netos lhe pediam. Não sabia nada de música mas cantava. Não sabia tocar instrumentos, mas acompanhava as suas canções com um instrumento improvisado que transportava sempre consigo, o sovaco.
Extraía sons colocando a sua mão direita debaixo do sovaco esquerdo, colocando este braço e antebraço em “V” movimentava-o para baixo e para cima, de forma ritmada, ao mesmo tempo que a mão direita controlava a saída de ar debaixo do sovaco, provocada por este movimento. Os sons eram um misto de trompete com corneta, mas também muito parecidos com os sons que os sofredores de flatulência emitem nos momentos de maior aperto. Eram estes últimos sons que faziam delirar os seus netinhos que pediam que os repetisse vezes sem fim, às horas das refeições.
As refeições significavam convívio familiar. Eram os únicos momentos em que não se estava a trabalhar e serviam também a Miguel para contemplar a estrutura de madeira que suportava aquele telhado com um equilíbrio geométrico tão perfeito que parecia ser impossível aguentar todo aquele peso de forma tão simples e harmoniosa.
O seu animal de estimação não era um cão nem um gato. Era uma mula de grande porte, musculada pelo trabalho de lavoura mas excelentemente cuidada, sempre limpa e escovada e livre, já que pastava no campo completamente solta desde de tenra idade. Nem parecia uma besta de trabalho mas sim um daqueles cavalos levados a concursos de beleza. Seguia o dono como um cão, via nele um Deus protector, não se deixava levar por ninguém. Quando o Miguel parava ela parava imediatamente e assim ficava, sem estar amarrada, à espera do dono. Miguel chamava-lhe a minha cãozinha.
A vida de Miguel parecia um daqueles gráficos de linhas, com variações em “V” muito pronunciadas. Cresceu no meio de muitas crianças nas mesmas circunstâncias, fez amizades mas não as conservou, não havia como. Os telefones eram poucos, os carteiros não chegavam ao campo. Longe era o lugar onde todos os seus companheiros de infância se tinham instalado.
Foi no Algarve serrano, e longe do Allgarve das praias, que começou a trabalhar, a cozer fornos . Este trabalho implicava o corte de mato, silvados e apanha de lenha seca que era transportada às costas ou em carroças, consoante a distância até ao forno, em quantidade suficiente para o manter a arder, no mínimo, durante dois dias e duas noites. Mesmo depois de casar e já com as filhas nascidas continuou este trabalho, o que implicava estar fora de casa semanas seguidas. Só para chegar ao forno e regressar a casa, gastava quatro dias a caminhar.
Mais tarde, começou a dedicar-se à agricultura de subsistência nos campos que tinha à volta de casa e aumentou a produção de griséus , tremoços, as alfarrobas e amêndoas começavam a render bom dinheiro, que era escondido em frascos de vidro de café solúvel e nas latas que continham chocolate em pó para misturar com água ou leite. Para o esconder de eventuais amigos do alheio era embrulhado dentro de pequenas bolsas de pano, costuradas pela sua mulher, que depois eram metidas no meio de feijão e grão, guardado nestas embalagens.
Foi nessa altura que a linha gráfica representativa da felicidade e de algum conforto, subiu ao pico máximo, ainda que a casa estivesse mais vazia, as suas filhas tinham já rumado a Lisboa.
Na altura de férias juntavam-se todos naquela casa. Uma vez que o seu trabalho era logo ali, à volta da casa, tinha tempo para, à volta da mesa, contar as suas histórias, cantar e tocar para os seus netos ao mesmo tempo que saboreava as refeições com os sabores e odores que nos são hoje vendidos como gourmet.
A morte prematura da sua filha Isilda veio trazer-lhe muitas angústias. Pela primeira vez pensou na sua própria morte. Nada voltou a ser como dantes, mesmo que a família restante fosse aparecendo frequentemente, a única coisa que ainda lhe dava algum amparo às suas longas pernas era a sua Emília. Aquelas pernas que calcorreavam longas veredas, durante dias recusavam-se agora a andar. A maleita não era nos membros inferiores, era psicológica. Foi nessa altura que todas as suas dúvidas sobre o que era a morte o começaram a atormentar. Comentava com a mulher que a morte, era o corpo frio, era não aparecer, era não conseguir comunicar, era não ser visto, era estar deitado sem se mexer, mas como é que se sabe que já morremos?
Nunca obtinha resposta, excepto da sua mulher que dizia; mechas para a conversa.
A morte da Emília, aos 89 anos, embora aceitável do ponto de vista do que era a esperança média de vida, deixou-o sozinho de novo, tal como quando nasceu. Disseram-lhe que a Emília tinha morrido, mas quem lhe disse a ela que estava morta? Toda a gente lhe dizia que estar morto era o contrário de estar vivo. Mas esse não era o seu problema. O seu problema é que ninguém lhe dizia o que era o contrário de estar vivo. Queria ter a certeza, que seria ele a saber e a comunicar, pelo menos a si, que estaria morto e que estando morto, tudo se desligava, tudo se apagava, que nenhum dos meus sensores ficava activo como a caixa negra de um avião que depois de um acidente, fica a emitir durante 30 dias impulsos sonoros na frequência 37,5Hz se estiver submersa e é capaz de resistir, durante 30 minutos a temperaturas de 1.100 graus Celsius.
Falou com o médico que assinou a certidão de óbito da mulher. Este explicou-lhe que ela não sabia que tinha morrido. Fora ele como médico, de acordo com a sua experiência, a saber que ela tinha morrido porque não respirava.
Miguel, não ficou convencido, pensou logo nas galinhas, corta-se-lhes a cabeça, não respiram, mas estão vivas.
O que é facto é que a casa também se ressentiu desta falta de calor humano e foi-se degradando.
Dois meses depois, ao jantar, Miguel passeava o seu olhar ao redor da cozinha. Cansado, fixou-se no telhado que tanto apreciava. A casa sentiu-se lisonjeada ao ser olhada e ficou na expectativa de que ele reparasse nas telhas partidas que deixavam passar a água, apodrecendo a sua estrutura de madeira. Ele que, noutros tempos achara a estrutura em asna tão bela e elegante, agora não lhe ligava absolutamente nada. Se lhe caísse em cima era uma sorte, pensava. Foi dormir.
No dia seguinte acordou triste para não variar. Abriu a porta, viu o Sol a começar a subir no horizonte, as andorinhas a esvoaçar à volta dos ninhos feitos nos beirais da casa, ouviu os grilos e as cigarras. Sem rumo, nem ânimo, começou a andar, as pernas pareciam que pesavam mais do que o costume, apenas o cheiro a eucalipto, e a brisa na cara que trazia também um ligeiro odor a poejo, o animou um pouco. Quando deu por ele estava na aldeia de Belmeque.
Viu um carro funerário, costumava vê-lo a passar quando ia à aldeia, tal como se fosse um autocarro de passageiros, mas sem horário nem paragens definidas. Voltou para casa, quando chegou, viu um carro à porta, era um dos seus netos, com a namorada. Com uma alegria imensa, disse logo: – Ficam cá esta noite, vou já tratar da janta . — Sim avô, fazemos-te companhia.
Falou sobre as suas dúvidas ao neto. Este fez umas pesquisas na internet e explicou-lhe tudo o que ele queria saber, mas sabia que não tinha a resposta certa para lhe dar. Miguel ouviu e ficou a saber o que já sabia. Ninguém toma conhecimento que morre. O neto continuou. Quando não temos pulsação nem respiração por algum tempo ocorre a morte cerebral, ainda que alguns dos nossos órgãos fiquem temporariamente activos. É por isso que é possível transplantar órgãos de mortos para outras pessoas que deles necessitam.
Os médicos e estudiosos têm relatado casos de pessoas que estiveram muito mal, referindo que estas quando recuperam descrevem sensações de paz e ausência de dor; de viajar dentro de um túnel, de ver o seu próprio corpo fora dele, de relatar com precisão os actos médicos efectuados no seu corpo, de ver familiares já falecidos.
Ficou a saber mais umas coisas, mas não o que lhe interessava.
No dia seguinte, despediu-se do neto, com um abraço muito forte sem sentir esforço ou pressão, pese embora estivesse a apertá-lo muito.
Voltou para a cozinha para arrumar a louça do pequeno-almoço, mas desistiu e sentou-se.
Olhou de novo para o tecto.
Virou-se para a casa e disse-lhe; – Sabes, estou como tu, velho, frio, desamparado. Abracei o meu neto com todas as minhas forças e não o senti, parecia que estava a apertar uma esponja.
Tenho a comunicar-te que morreste, sim sou eu, o teto, o telhado, que te estou a comunicar que morreste. Estás sem calor humano, tal como eu, pese embora o calor abrasador lá fora. – Se calhar tens razão. Nasci sem pais, talvez volte a nascer outra vez, rodeado de calor humano, porque calor sempre tive. Mas agora tenho medo, medo de não aguentar uma eventual infância feliz.