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Generalidades

Generalidades

24
Ago24

Nuances de luz


Vagueando

Do Jardim da Vigia em Sintra é possível assistir a um espetáculo de luz natural, em especial de manhã ou ao final da tarde, porque a neblina marca quase sempre presença, o que permite (às vezes nem por isso) assistir à passagem do Sol por entre as nuvens, o que confere ao jardim e à paisagem que dele se avista tonalidades fantásticas.

Adoro este jardim, talvez o mais belo de Sintra, porque para além de  pequeno, erguido em cima de uma antiga pedreira é um miradouro, não daqueles em que se olha para baixo, mas daqueles em que se olha para cima.

E lá em cima existem três montes, o monte Sereno, onde está o Castelo Gregório, o monte onde está o Palácio da Pena e o monte onde está o Castelo.

Duas curiosidades, a primeira é que muitas vezes chegamos a este jardim e só vemos nevoeiro e um palmo à frente do nariz. A segunda é que quando não há nevoeiro, conseguimos ver a escadinhas (da Vigia) do seu lado esquerdo e descendo-as, podemos aceder a qualquer um dos montes, sem ver carros por perto, uma delícia.

Descer estas escadinhas é fácil, há quem diga que terão sido o primeiro caminho para o Castelo, mas depois atingir qualquer um daqueles montes é um pouco mais difícil mas muito relaxante.

Feita a introdução deixo umas fotos onde poderão facilmente ver as nuances de luz que fazem do jardim uma beleza e, certamente, não deixarão de perceber que umas vezes, lá no topo é possível ver o Palácio da Pena, noutras vezes nem por isso.

Nota Final - Estas fotos foram todas obtidas hoje, no espaço mais ou menos de uma hora em que estive a admirar este jardim, que lhe chamo meu por adoração, mas é público felizmente e é gratuito.

Bom passeio.

05
Mai24

Castelo S.Gregório

Monte Sereno - S. Pedro de Penaferrim - Sintra


Vagueando

Destes dois bancos - de jardim - observam-se três montes na Serra de Sintra. Da direita para a esquerda, o monte onde nasceu o Castelo dos Mouros, o monte onde nasceu o Palácio da Pena e o Monte Sereno onde, muito mais tarde, nasceu um sonho que nunca se concretizou – A criação de um Hotel, Restaurant, Pousada neste monte.

Gregório Casimiro Ribeiro, o mentor do sonho, está intimamente ligado a Sintra por vários motivos.

Em 1911 associando-se a José Ambrósio, enteado de Josefa das Neves (queijadas da Sapa) começa a fabricar queijadas em Ranholas que eram vendidas no Café Pérola em Sintra. Em 1916 com esta sociedade desfeita, estabelece-se por conta própria no Largo do Regedor, actualmente Largo Dr. Manuel Arriaga em S.Pedro de Penaferrim, dando origem à marca Queijadas Recordação de Sintra, que ainda hoje existem e são comercializadas em estabelecimento próprio, “Gregório” (nome aditado pelo seu filho) também conhecido pelas queijadas do Polícia Sinaleiro. Este polícia, moldado em chapa ainda existe no estabelecimento mas numa posição mais recatada, anteriormente estava no passeio e era bem visível aos automobilistas que “supostamente” deveriam obedecer à ordem de paragem nesta Casa das Queijadas.

Blank 3 Grids Collage.png

Fotos (de cima para baixo e da direta para a esquerda) Jornal de Sintra 147 de 15/11/1936, Ecos de Sintra 391/391 de 10/06/1944 e Jornal de Sintra 172 de 23/05/1937.

Na foto de cima é possível ver, do lado direito, o Polícia Sinaleiro no passeio, com a indicação “Paragem Queijadas”. A menina em cima do burro era Vera Ribeiro neta de Gregório Casimiro Ribeiro e o homem era o actor António Ribeiro, pretendendo-se com esta foto recriar o transporte de queijadas a caminho das feiras onde eram vendidas.

Para além o negócio das queijadas fundou o jornal local “O Regional” em 1921. Promoveu a construção do Castelo S. Gregório – nome atribuído pelo povo - no Monte Sereno, que é visível de vários pontos de Sintra, nomeadamente dos bancos que deram início a esta história, ainda que o arvoredo que tem crescido à sua volta o esteja a esconder. Chegou a residir no primeiro andar de uma casa encarniçada existente no Largo Dr Manuel Arriaga, anteriormente denominado do Regedor, onde a título curiosidade, plantou em combinação com Joaquim Rodrigues Ferreira, antigo fiscal da Câmara os quatro plátanos ali existentes.

A ideia de edificar este castelo, nasce em 15 de Outubro de 1926, com o pedido de construção de uma casa de habitação, processo nº 516 na Câmara Municipal de Sintra que foi deferido em 29/11/1926.

Ainda que o pedido de construção referisse que se destinava a uma casa de habitação, a aprovação do projeto é feita na base de que se tratava de um Restaurante Hotel, pelo que o proprietário ficou isento do pagamento de taxas.

Na exposição que envia à Câmara, em 27/11/1926, solicita a classificação do projeto como turístico, fazendo questão de lembrar que a construção era demasiado dispendiosa, devido ao terreno acidentado, ainda que não se poupasse a sacrifícios, reconhecendo que eram muito superiores às suas forças, essa classificação seria uma mais-valia, quer junto da Câmara quer junto do Governo para levar o projeto a bom porto.

A licença de construção foi atribuída por 12 meses, sendo que as obras demoraram bastante mais, uma vez que só em 1942 é que Gregório Casimiro Ribeiro solicita o pedido de vistoria, indicando que a Casa de Repouso, Hotel ou Restaurant se encontra concluída, faltando apenas a respetiva ligação do esgoto, que não teria sido realizada por não ter sabido antes e na altura do pedido também ainda não o saber, qual o destino a dar à construção.

Em 1940, duas notícias no Jornal Ecos de Sintra, abordava-se a obra. Na edição nº 225 de 24/03/1940, O castelo iria ser uma pousada em breve, dado que dias antes o diretor do Secretariado de Propaganda Nacional visitou o local e que teria ficado encantado com a vista que dali se desfrutava. A outra, na Edição nº 226 de 01 de Maio de 01/05/1940, com o título “Iniciaram-se as obras na pousada do Monte Sereno”  dá-se nota que o projeto terá obtido uma comparticipação do Estado, através de um contrato assinado no dia 27 de Março do mesmo ano, com a Direção Geral da Fazenda Pública, cuja fiscalização será assegurada pela Secretaria da Propaganda Nacional e que será inaugurada brevemente.

Em 29 de Outubro de 1942 é realizada vistoria ao edifício e no dia seguinte é emitida a licença de habitabilidade nº 126, pela Repartição de Obras Municipais, tendo sido paga uma taxa de vistoria 55 escudos, sendo que esta repartição “toma a liberdade de lembrar que a construção foi autorizada com isenção de taxa de licença, parecendo ser de justiça manter-se essa isenção se a construção for destinada a fins turísticos, como primitivamente” O parecer do Fiscal da Câmara – Francisco do Santos, justifica que o projeto obedece aos regulamentos em vigor para as construções urbanas, considerando projeto como bastante interessante.

Entretanto o Chefe da Repartição de Finanças do Concelho de Sintra, dirige em 22/12/1948, o pedido 2405 à Câmara Municipal de Sintra, a solicitar esclarecimentos sobre a emissão da licença de habitação para o imóvel que não estaria em condições para lhe ser atribuída a referida licença de habitabilidade e onde a dado passo pode ler-se “…há quem queira demonstrar perante esta Secção de Finanças que esse prédio não estava, nessa data, em tais condições”.

Durante a construção deste Castelo, foram encontrados objectos pré-históricos, descritos pelo arqueólogo Félix Alves Pereira, num artigo no Diário de Notícias, em 1932/33, como sendo cinco utensílios ou armas de pedra usadas pelo homem antes deste tomar conhecimento dos metais. Noutro artigo do mesmo arqueólogo, faz-se referência também a achados de utensílios em Metal. Este arqueólogo fala ainda em achados estranhos, nomeadamente uma Bala de Pedreiro num artigo publicado em jornal que não consegui identificar nem tão pouco a data de publicação.

Tanto quanto sei o sonho de transformar o edifício acastelado numa pousada, nunca se concretizou e em 30/09/1942, uma pequena notícia no Jornal Ecos de Sintra número 320, dá-se nota de que o castelo foi vendido e que desde essa data tem passado por vários particulares, tendo encontrado recentemente um anúncio que estará de novo à venda por cerca de 6 milhões de euros. O anúncio pode ser consultado no link abaixo e é uma excelente oportunidade para o poderem apreciar por dentro, cuja beleza me parece muito superior à exibida no exterior.

https://kretzrealestate.com/pt/annonce/4250n/chateau-manoir/

Um dos anteriores proprietários ter-se-á queixado das dificuldades para chegar com o seu carro até ao Monte Sereno, uma vez que o excesso de trânsito descendente, na Calçada da Pena, proveniente do Palácio da Pena e a ocupação indevida com estacionamento dos locais mais largos desta calçada, destinados justamente ao cruzamento de veículos, impedia-o de subir a mesma calçada (ainda que a sinalização o permitisse e permita) até à sua casa, correndo sérios riscos de ter um acidente.

No link abaixo encontram-se várias fotos dos artigos dos jornais citados neste texto, anúncio diversos, plantas e fotos do Castelo.

https://photos.app.goo.gl/qF17mFLqVNpQCjys8

Bibliografia

Obras de José Alfredo da Costa Azevedo, nomeadamente o livro Apontamentos Vários e o livro Bairros de Sintra.

Jornal de Sintra

Jornal Ecos de Sintra

Arquivo Municipal da Câmara Municipal de Sintra

Outros Links de interesse sobre esta construção

Paisagem Cultural de Sintra  

Caminheiro de Sintra 

As 5 Quintas e Edifícios Maravilhosos em Sintra

03
Mai21

O Que se Passa de Noite


Vagueando

Nota Prévia; O texto abaixo não é da minha autoria. No final encontrarão detalhes sobre o autor e sobre o livro.

 

Uma das noites da semana passada, à hora em que as ervanárias e os majores reformados estão dormindo a sono solto e só giram pela cidade os noctívagos, as mulheres de má vida e os “chauffeurs” de “side-cars”, realizou-se uma assemblea geral das ruas de Lisboa afim de protestarem, contra o desdém ao qual têm sido votadas há tempos a esta parte pelas sucessivas edilidades que se têm sucedido no Município.

Compareceram quási tôdas as praças, largos, avenidas, ruas, calçadas, travessas e becos desta cidade de Ulisses, e o Castelo, na sua qualidade de mais idoso, assumiu a presidência, secretariados pela praça do Comércio, que representava todas a s forças vivas, e pelo Rossio, que representava os elementos avançados.

 A assemblea era variadíssima. A um lado as artérias aristocráticas, as avenidas Duque de Loulé, do lado do Conde de Valbom, o Largo do Marquês de Tancos, etc., conversavam com as ruas ricas, como as do Capelistas. O Conde de Redondo, palestrava com o Bairro Alto acêrca de mulheres. O largo da Graça dizia piadas à praça da Alegria e a um canto, a travessa do Fala-Só falava com os seus botões. Vários campos; o de Santa Ana, o de Ourique, o Grande, trazendo o pequeno pela mão, discutiam animadamente, enquanto o das Cebolas se mantinha de parte, devido ao péssimo cheiro que exalava, conversando apenas com ruas sopeiras: a rua Palmira, a rua Maria, etc. A Madalena declarava-se arrependida de ter vindo. A rua da Fé confiava absolutamente nos resultados da assemblea.

Por fim o Castelo agitou a campainha e declarou aberta a sessão.

– Minhas senhoras e meus senhores! Há muito tempo que lavra…

– Presente! – Exclamou do fundo da sala o elevador, que vinha encarregado de apresentar as desculpas das escadinhas, impossibilitadas de comparecer por falta de calcetamento.

– Não é de v.exª. que se trata – explicou amavelmente o presidente – Há muito tempo, repito, que lavra entra as ruas de Lisboa uma profunda indignação contra incúria dos municípios. Durante anos, esperaram vir a ser atendidas nas suas justas pretensões…

– A quem v.exª. o diz – interrompeu a travessa da Espera.

– Vemos, porém, que os senhores edis cada vez menos se preocupam connosco. A falta de água, por exemplo, chegou ao seu limite.

– Apoiado! – gritaram em côro o largo da Oliveirinha, a rua das Parreiras, a da Vinha, o largo da Amendoeira e o das Amoreiras.

– Eu, devido à falta de regas, estou neste estado – exclamou a Horta Sêca.

– E eu? – acrescentou o Jardim do Regedor – De não ser regado há séculos, não me crescem outras flores senão mal comportadas e batoteiros.

– A miúdo, – continuou  o presidente – lemos nas gazetas que se vão dar providências.

– Eu cá, só vendo, acredito – murmurou S. Tomé.

– Não posso ver isto com bons olhos – murmurava a rua da Inveja.

– Também eu – acrescentava a travessa do Cego.

– O certo é que todos os verões a sêca é terrível e tudo se complica, se acaso há um incêndio.

– Ponham os olhos em mim – bradou a travessa da Queimada.

– Promessas e mais promessas e nunca se passa disso – exclamou do fundo da sala a rua do Passadiço.

– Realmente, é preciso ter uma paciência de Forno – concluiu o respectivo beco.

– Noutros tempos…

– Perdão – interveio a Avenida da República – Será melhor não querer fazer política na assemblea.

– Apoiada – gritou a Avenida 5 de Outubro.

– Noutros tempos, – continuou o presidente – não há dúvida que tudo corria de outra forma…

– Muito bem – concordaram S. Mamede, Santa Marta, S. Bento, S. André e S. Pedro de Alcântara… (começa no início da página 86).

– Fora os talassas ؘ– gritavam do fundo da sala.

– Ordem! Ordem! – suplicava a rua da Paz.

– Certas coisas não eram toleradas – insistiu o Castelo.

– Isso é piada para mim? – perguntou a travessa das Salgadeiras.

– Não foi minha intenção referir-me a V.Exª.– explicou o Castelo.

– Será bom haver tento na língua, que eu á estou de atalaia – aconselhou a rua da Barroca,

– Parte-se-lhe a travessa da Cara – propôs todo Gingão, o beco do Quebra-Costas. A assemblea começava a agitar-se. Um chôro convulsivo de criança ouviu-se para um canto. Era a rua da Infância assustada com o barulho. A calçada de S. Francisco fazia gestos desordenados. O presidente agitava desesperadamente a campainha. Puséram S. Vicente de fora, e pouco a pouco, a calma renasceu.

– Outro motivo de queixa nosso, – continuou o presidente – é alteração de nomes a que foram sujeitas muitas das aglomerações de Lisboa. Algumas ruas que eram conhecidíssimas, passaram a ser verdadeiros problemas. Ruas fêmeas passaram a ser machas, travessas machas passaram a ser fêmeas. Até parece mal em certos casos. Dá que falar aos becos da vizinhança.

– Eu cá, – explicou o Forno do Tijolo – passei a ser Angelina Vidal.

– E eu, – acrescentou a Madre de Deus – sou agora Manuel Bernardes.

– Só o que falta – bradou a rua da Rosa – é que ainda me chamem rua do Barbosa …

– Está tudo maluco – comentava a meia voz a travessa de Rilhafoles.

– Já não há religião, minha boa amiga – explicava a dos Fiéis de Deus.– E muita falta de patriotismos – acrescentava o Campo Mártires da Pátria.

– EU só quero ouvir falar de um certo número de coisas, estou que nem pólvora – resmungava a rua do Salitre.

– <À noite a iluminação é precária. De dia ainda a coisa escapa…

– Não há dúvida – comentou a rua do Sol.

– Mas, mal anoitece, há entre nós quem não consiga ver um palmo diante do nariz e se transforme em valha –couto de gatunos de assalto. É uma vergonha. A respeito de limpeza de vassoura, temos conversado.

– Peço a palavra sobre o assunto – requereu a rua das Pedras Negras.

Quanto a obras e canalizações é um inferno. Sei de algumas colegas a quem deixam meses e meses de barriga aberta. Outras estão por concluir. Outras levaram anos para chegar a seu têrmo.

– Menina e moça, – explicou a rua Bernardim Ribeiro – me levaram da Sociedade Farmacêutica até Gomes Freire… Pois ainda não tenho os prédios todos.

– Explicam os vereadores dos vários pelouros, – continuou a presidência – que tudo são questões de dinheiro. Os cofres estão exaustos, os funcionários e operários cada vez reclamam mais ordenado e férias. Ora nós não temos nada com isso. Se querem que continuemos a deixar-nos pisar, hão-de nos tratar com toda a consideração. Pretendemos ser varridas, regadas, iluminadas, policiadas, concluídas. Proponho, pois, que se dê um prazo para que as nossas pretensões sejam atendidas. Terminado que seja, levantar-se-ão as pedras das calçadas. Faremos sabotagem da planta da cidade.

O Atêrro passará para o Campo Grande, o beco do Monete virá para o lugar da rua do Ouro, o Chiado mudar-se-á para Campolide, na rua Fresca haverá calor, a rua do Meio desviar-se-á para o lado e o ministério do Trabalho encontrar-se-á de-repente no Cata que farás. O Alto do Pina pôr-se-á de cócoras…

Aqui o largo das Necessidades pediu licença para ir lá dentro.

– A rua da Emenda – continuou o orador – ficará pior que o soneto, o Calhariz deixará de estar à Bica etc. etc.

– E, se estabelecêssemos um governo militar, sob a presidência da Praça Duque de Saldanha? – propuseram as ruas dos Defensores de Chaves , dos Heróis de Quionga e dos Vencedores de Naulila?

– Não está mal a descoberta – comentaram as ruas Vasco da Gama, Bartolomeu dias e Diogo Cão.

– Acho preferível, – propôs com o seu reconhecido bom senso a Conceição Vélha –  organização de um ministério de competências, que podia ser o seguinte:

Interior – Chafariz de Dentro.

Comércio – Ruas dos Bacalhoeiros.

Guerra – Rua 4 de Infantaria.

Marinha – Rua do Arsenal.

Instrução – Travessa das Escolas Gerais.

Estrangeiros – Ferregial de Baixo.

Finanças – Rua Pedro Cem.

Colónias – Rua das Pretas.

Posta à votação a proposta, foi aprovada por unanimidade e a sessão encerou-se com uma grande salva de Ruas Novas das Palmas. O Largo de Andaluz dançava à espanhola, o beco do Imaginário nunca imaginaria que corresse tão bem e a rua António Pedro encolhia os ombros, murmurando:

– Calhou!

Este conto faz parte de um livro de bolso, Colecção Civilização, nº 34 - Série Amarela, com o título Contos Escolhidos Humorísticos. Foi composto e impresso, em 1937,  na Tipografia e Encadernação "A Portuense", na Rua de Vizela, 80 - Portto.

Autor André Brun, nascido em Lisboa, na Rua do Salitre em 1881.

A ortografia deste conto é a que consta do livro.

 

17
Jun20

Do 80 para o 8


Vagueando

 

 

20200603_125948.jpg

Almoço num dia de Junho, no Restaurante Bristol, com bom tempo o que em Sintra quer dizer, sem nevoeiro e sem vento. Não se vê uma pessoa ou um carro na estrada da Volta do Duche. 

Regresso sem inspiração e sem gana o que é contra a minha vontade. Nem consigo explicar porquê. Talvez venha para aqui desabafar, meditar, lamentar, buscar, passar o tempo ou, quem sabe, à procura de encontrar uma qualquer motivação ou emoção.

Este novo normal faz-me muito mal, afecta-me a moral.

A falta de vida em Sintra deixa-me triste, a falta de gente aborrece-me, a falta de movimento faz-me sentir morto, a falta de tudo o que mexe deixa-me com stress, a falta de som irrita-me.

Não há quem se me dirija a perguntar como se chega ao Castelo ou ao Palácio, não há quem me pergunte onde comer as melhores queijadas, não há quem me questione onde consegue estacionar o carro, não há quem me diga, mas Sintra é assim todos os dias, não há quem me peça para lhe tirar uma foto (em abono da verdade já era raro por causa da mania das selfies).

Os passeios estão a ficar flácidos porque não são pisados, as escadarias não gostam de ver os seus degraus ao deus dará, os corrimãos querem ser agarrados, os monumentos não têm audiência para contar as suas histórias, as árvores fazem sombra que ninguém aproveita, a água corre pelos riachos sem testemunhas nem árbitros que confirmem que passou por ali, as dobradiças estão desempregadas e em risco de reumatite permanente, as fechaduras estão fartas de estar fechadas, as portas há muito que não se mexem, algumas já estão a engordar, os vidros continuam transparentes mas ninguém vê para dentro ou para fora, os postigos estão fartos de tapar a luz do sol, os tapetes estão fartos de estar enroladas, os capachos sentem-se humilhados por ninguém lhes esfregar os sapatos, os semáforos estão cansados de dar ordem de paragem ou de passagem sem que ninguém lhes ligue, as fontes sentem-se abandonadas, as mesas anseiam por uma toalha.

Resta-me a paisagem verde ,que parece ser a única coisa viva à minha volta. 

Sinto que me largaram de repente num deserto sem areia, cuja travessia vai ser longa e dolorosa para todos.

Sinto que passámos do 80 para o 8 e termino por aqui. Se um disco voador aterrasse hoje em Sintra, na Volta do Duche, no Castelo ou no Palácio, não estaria cá ninguém para testemunhar.

Vai na volta, preciso mesmo de um duche, estarei a sonhar?

 

 

 

 

21
Mai18

Os Bancos


Vagueando

Bancos.JPG

 

Os Bancos diferenciaram-se dos bancos de jardim porque levaram os velhinhos a levantarem-se destes para colocarem as suas poupanças nos primeiros.

Assim os Bancos (do dinheiro, nada de confusões) começaram por pagar aos depositantes para lhe confiarem o seu pilim e, depois de conquistada a confiança, abandonaram esta boa prática para começar a apregoar que estavam a operar no mercado segundo as melhores práticas.

Ora se uma boa prática é substituída pelas melhores práticas, seria lógico que a coisa fosse  para melhor.

Contudo, as boas  práticas não corresponderam às expectativas legítimas diga-se, das pessoas. Os Bancos praticamente deixaram de ter interesse no dinheiro dos depositantes para passar a ter interesse nas comissões que cobram aos clientes (depositantes ou não). Dá muito menos trabalho.

Os Bancos acham que guardar o dinheiro dos depositantes é uma grande seca e ainda por cima cara e, vai daí, que se lixe o dinheiro para remunerar, nós queremos sim é emprestar, para receber juros e cobrar comissões.

Os Bancos passaram assim a inventar dinheiro, tipo como se tivessem uma fotocopiadora, afinada de acordo com as melhores práticas e voilá, dinheiro para emprestar e dar lucro era coisa que não faltava, era o que faltava!  Para apimentar a coisa, aos juros recebidos, os Bancos juntaram-lhe umas comissões.

Acontece que a malta, vulgo ex-depositantes, gastou o que tinha e o que não tinha, obtiveram crédito (barato é certo, melhor dito, ao preço da uva mijona) para tudo e mais alguma coisa, inclusivé para comprar um casal de periquitos. Se não me engano, chegou a existir crédito bonificado para compra de casas para jovens casais de periquitos, com dispensa abastecida com umas boas arrobas de alpista.

Ainda que as boas e melhores práticas associadas a códigos de ética, de conduta e de bons relatórios anuais aprovados pelos accionistas e certificados pelos melhores experts,  o negócio deu para o torto e o que era barato, como diz o povo, saiu caro.

Saiu caro aos depositantes que ficaram sem poupanças, saiu caro aos clientes que agora estão amarrados a empréstimos que têm de pagar (às vezes até de casas que já não têm, porque as entregaram ao banco), bem como as respectivas comissões e saiu caro a todos (mesmo que não fossem clientes ou depositantes) porque ficaram a pagar impostos, a preços de mercado, o preço (custo) da prática destas boas práticas.

Os Bancos que andavam satisfeitos com as boas práticas e os reguladores adormecidos pelas suas más práticas, conseguiram, ao que parece, fazer o impossível e irracional. Colocar os devedores (quiçá até aqueles grandes que não pagam e o sigilo protege) a receber juros pelos seus empréstimos e por arrasto os depositantes a pagar pelos seus depósitos. É assim como a história da cigarra e da formiga em que o moral da história passou a ser premiar a cigarra e penalizar a formiga. Ainda bem que já não se contam estas coisas às criancinhas, elas iam perceber

Ainda dizem que a inovação é o futuro. Os Bancos concluíram agora que os seus grandes gestores só eram bons em tempos de vacas gordas e agora dizem, ai, ai, que não pode ser.

Até o vendedor da banha da cobra, que tem fama de vender gato por lebre, não conseguia fazer uma coisa destas.

Enquanto espero que os Bancos se recomponham vou até aos bancos do Miradouro da Condessa de Seisal, também conhecido por Jardim da Vigia, não para vigiar coisa nenhuma, apenas para contemplar os três montes, o do Castelo, o do Palácio e o do Monte Sereno. Ao menos ali, quando não há tuk tuks, sereno e não pago comissões.

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