Nota Prévia; O texto abaixo não é da minha autoria. No final encontrarão detalhes sobre o autor e sobre o livro.
Uma das noites da semana passada, à hora em que as ervanárias e os majores reformados estão dormindo a sono solto e só giram pela cidade os noctívagos, as mulheres de má vida e os “chauffeurs” de “side-cars”, realizou-se uma assemblea geral das ruas de Lisboa afim de protestarem, contra o desdém ao qual têm sido votadas há tempos a esta parte pelas sucessivas edilidades que se têm sucedido no Município.
Compareceram quási tôdas as praças, largos, avenidas, ruas, calçadas, travessas e becos desta cidade de Ulisses, e o Castelo, na sua qualidade de mais idoso, assumiu a presidência, secretariados pela praça do Comércio, que representava todas a s forças vivas, e pelo Rossio, que representava os elementos avançados.
A assemblea era variadíssima. A um lado as artérias aristocráticas, as avenidas Duque de Loulé, do lado do Conde de Valbom, o Largo do Marquês de Tancos, etc., conversavam com as ruas ricas, como as do Capelistas. O Conde de Redondo, palestrava com o Bairro Alto acêrca de mulheres. O largo da Graça dizia piadas à praça da Alegria e a um canto, a travessa do Fala-Só falava com os seus botões. Vários campos; o de Santa Ana, o de Ourique, o Grande, trazendo o pequeno pela mão, discutiam animadamente, enquanto o das Cebolas se mantinha de parte, devido ao péssimo cheiro que exalava, conversando apenas com ruas sopeiras: a rua Palmira, a rua Maria, etc. A Madalena declarava-se arrependida de ter vindo. A rua da Fé confiava absolutamente nos resultados da assemblea.
Por fim o Castelo agitou a campainha e declarou aberta a sessão.
– Minhas senhoras e meus senhores! Há muito tempo que lavra…
– Presente! – Exclamou do fundo da sala o elevador, que vinha encarregado de apresentar as desculpas das escadinhas, impossibilitadas de comparecer por falta de calcetamento.
– Não é de v.exª. que se trata – explicou amavelmente o presidente – Há muito tempo, repito, que lavra entra as ruas de Lisboa uma profunda indignação contra incúria dos municípios. Durante anos, esperaram vir a ser atendidas nas suas justas pretensões…
– A quem v.exª. o diz – interrompeu a travessa da Espera.
– Vemos, porém, que os senhores edis cada vez menos se preocupam connosco. A falta de água, por exemplo, chegou ao seu limite.
– Apoiado! – gritaram em côro o largo da Oliveirinha, a rua das Parreiras, a da Vinha, o largo da Amendoeira e o das Amoreiras.
– Eu, devido à falta de regas, estou neste estado – exclamou a Horta Sêca.
– E eu? – acrescentou o Jardim do Regedor – De não ser regado há séculos, não me crescem outras flores senão mal comportadas e batoteiros.
– A miúdo, – continuou o presidente – lemos nas gazetas que se vão dar providências.
– Eu cá, só vendo, acredito – murmurou S. Tomé.
– Não posso ver isto com bons olhos – murmurava a rua da Inveja.
– Também eu – acrescentava a travessa do Cego.
– O certo é que todos os verões a sêca é terrível e tudo se complica, se acaso há um incêndio.
– Ponham os olhos em mim – bradou a travessa da Queimada.
– Promessas e mais promessas e nunca se passa disso – exclamou do fundo da sala a rua do Passadiço.
– Realmente, é preciso ter uma paciência de Forno – concluiu o respectivo beco.
– Noutros tempos…
– Perdão – interveio a Avenida da República – Será melhor não querer fazer política na assemblea.
– Apoiada – gritou a Avenida 5 de Outubro.
– Noutros tempos, – continuou o presidente – não há dúvida que tudo corria de outra forma…
– Muito bem – concordaram S. Mamede, Santa Marta, S. Bento, S. André e S. Pedro de Alcântara… (começa no início da página 86).
– Fora os talassas ؘ– gritavam do fundo da sala.
– Ordem! Ordem! – suplicava a rua da Paz.
– Certas coisas não eram toleradas – insistiu o Castelo.
– Isso é piada para mim? – perguntou a travessa das Salgadeiras.
– Não foi minha intenção referir-me a V.Exª.– explicou o Castelo.
– Será bom haver tento na língua, que eu á estou de atalaia – aconselhou a rua da Barroca,
– Parte-se-lhe a travessa da Cara – propôs todo Gingão, o beco do Quebra-Costas. A assemblea começava a agitar-se. Um chôro convulsivo de criança ouviu-se para um canto. Era a rua da Infância assustada com o barulho. A calçada de S. Francisco fazia gestos desordenados. O presidente agitava desesperadamente a campainha. Puséram S. Vicente de fora, e pouco a pouco, a calma renasceu.
– Outro motivo de queixa nosso, – continuou o presidente – é alteração de nomes a que foram sujeitas muitas das aglomerações de Lisboa. Algumas ruas que eram conhecidíssimas, passaram a ser verdadeiros problemas. Ruas fêmeas passaram a ser machas, travessas machas passaram a ser fêmeas. Até parece mal em certos casos. Dá que falar aos becos da vizinhança.
– Eu cá, – explicou o Forno do Tijolo – passei a ser Angelina Vidal.
– E eu, – acrescentou a Madre de Deus – sou agora Manuel Bernardes.
– Só o que falta – bradou a rua da Rosa – é que ainda me chamem rua do Barbosa …
– Está tudo maluco – comentava a meia voz a travessa de Rilhafoles.
– Já não há religião, minha boa amiga – explicava a dos Fiéis de Deus.– E muita falta de patriotismos – acrescentava o Campo Mártires da Pátria.
– EU só quero ouvir falar de um certo número de coisas, estou que nem pólvora – resmungava a rua do Salitre.
– <À noite a iluminação é precária. De dia ainda a coisa escapa…
– Não há dúvida – comentou a rua do Sol.
– Mas, mal anoitece, há entre nós quem não consiga ver um palmo diante do nariz e se transforme em valha –couto de gatunos de assalto. É uma vergonha. A respeito de limpeza de vassoura, temos conversado.
– Peço a palavra sobre o assunto – requereu a rua das Pedras Negras.
Quanto a obras e canalizações é um inferno. Sei de algumas colegas a quem deixam meses e meses de barriga aberta. Outras estão por concluir. Outras levaram anos para chegar a seu têrmo.
– Menina e moça, – explicou a rua Bernardim Ribeiro – me levaram da Sociedade Farmacêutica até Gomes Freire… Pois ainda não tenho os prédios todos.
– Explicam os vereadores dos vários pelouros, – continuou a presidência – que tudo são questões de dinheiro. Os cofres estão exaustos, os funcionários e operários cada vez reclamam mais ordenado e férias. Ora nós não temos nada com isso. Se querem que continuemos a deixar-nos pisar, hão-de nos tratar com toda a consideração. Pretendemos ser varridas, regadas, iluminadas, policiadas, concluídas. Proponho, pois, que se dê um prazo para que as nossas pretensões sejam atendidas. Terminado que seja, levantar-se-ão as pedras das calçadas. Faremos sabotagem da planta da cidade.
O Atêrro passará para o Campo Grande, o beco do Monete virá para o lugar da rua do Ouro, o Chiado mudar-se-á para Campolide, na rua Fresca haverá calor, a rua do Meio desviar-se-á para o lado e o ministério do Trabalho encontrar-se-á de-repente no Cata que farás. O Alto do Pina pôr-se-á de cócoras…
Aqui o largo das Necessidades pediu licença para ir lá dentro.
– A rua da Emenda – continuou o orador – ficará pior que o soneto, o Calhariz deixará de estar à Bica etc. etc.
– E, se estabelecêssemos um governo militar, sob a presidência da Praça Duque de Saldanha? – propuseram as ruas dos Defensores de Chaves , dos Heróis de Quionga e dos Vencedores de Naulila?
– Não está mal a descoberta – comentaram as ruas Vasco da Gama, Bartolomeu dias e Diogo Cão.
– Acho preferível, – propôs com o seu reconhecido bom senso a Conceição Vélha – organização de um ministério de competências, que podia ser o seguinte:
Interior – Chafariz de Dentro.
Comércio – Ruas dos Bacalhoeiros.
Guerra – Rua 4 de Infantaria.
Marinha – Rua do Arsenal.
Instrução – Travessa das Escolas Gerais.
Estrangeiros – Ferregial de Baixo.
Finanças – Rua Pedro Cem.
Colónias – Rua das Pretas.
Posta à votação a proposta, foi aprovada por unanimidade e a sessão encerou-se com uma grande salva de Ruas Novas das Palmas. O Largo de Andaluz dançava à espanhola, o beco do Imaginário nunca imaginaria que corresse tão bem e a rua António Pedro encolhia os ombros, murmurando:
– Calhou!
Este conto faz parte de um livro de bolso, Colecção Civilização, nº 34 - Série Amarela, com o título Contos Escolhidos Humorísticos. Foi composto e impresso, em 1937, na Tipografia e Encadernação "A Portuense", na Rua de Vizela, 80 - Portto.
Autor André Brun, nascido em Lisboa, na Rua do Salitre em 1881.
A ortografia deste conto é a que consta do livro.