O drama de uma folha em branco
Vagueando
Aquela folha havia sido cuidadosamente retirada de uma resma de quinhentas outras irmãs, que se encontravam acondicionadas num pacote protetor e depositada em cima de uma escrevaninha ao lado de uma caneta.
Estranhou, estranhou mesmo muito, até porque à sua frente tinha uma pessoa que segurava a caneta, não falava, quase não se mexia, mas parecia estar em grande esforço e sofrimento.
Enquanto esteve acondicionada naquela resma, bem embrulhada, protegida da humidade e da luz, foi ouvindo as conversas entre as suas irmãs e, dessas conversas nunca ouvira nada que se assemelhasse ao que lhe estava a acontecer.
As conversas decorreram ao longo do tempo e foram muitas. Desde a saída da fábrica, passando por vários transportes, até ser arrumada num armário, por baixo de uma impressora, onde o barulho era o pão nosso de cada dia, foi percebendo o destino que lhe estava destinado.
Assim, enquanto estupefacta observava o sujeito, foi recordando o que ouviu ao logo dos tempos, para ver se percebia porque razão estava ali. Tinha sido fabricada de acordo com uma fórmula Premiu, reciclada e com novas fibras com o objetivo de melhorar os resultados nas impressões a laser e a jacto de tinta. Tinha 80 g.m¯², High Performance, Super White.
Ainda por cima, tinha aprendido, também em português, umas coisas sobre as suas qualidades, tais como; ser multifuncional, ser de excelente qualidade de impressão e de oferecer maior proteção para a impressora.
Tinha sido distinguida pelos consumidores como a mais eficiente em toda a Europa.
Ouvira também as suas irmãs contar histórias de outras folhas, nomeadamente sobre quando eram chamadas a cumprir o seu papel. Era sempre de urgência, os utilizadores rasgavam furiosamente os pacotes, onde estavam acondicionadas, batiam-nas em cima de mesas para ficar bem alinhadas - como se não estivessem já – folheavam a resma rapidamente para a descomprimir e despejavam-nas dentro de uma gaveta, normalmente quente, de uma impressora.
Era nesta altura que mostravam o seu valor, correndo dentro daquela máquina infernal que lhes despeja tinta preta ou de várias cores, numa das faces ou, pior, nas duas, em voltas e mais voltas dentro daquela caranguejola sofisticadíssima, mas horrenda e barulhenta.
Aprenderam a manter sigilo sobre o teor dos assuntos que lhe depositam em cima, sem refilar ou protestar, já que foram ensinadas a não ter opinião nem direito de veto sobre a temática que lhe é impressa.
Não obstante, reza a história sobre algumas destas folhas, que ao perceberem o género de coisas com que vão ser impressas, se revoltam e amotinam, encravando a máquina de propósito. A impressora barafusta e dá mensagem de paper jammed o que provoca a ira do utilizador que se vê obrigado a abri-la, sujar bem as mãos, retirar as folhas revoltosas e começar tudo de novo.
Algumas folhas eram tão malvadas que largavam pequenos pedacinhos da sua fina espessura, nos locais mais apertados daquele amontoado de rolos que imobilizavam a máquina por vários dias, até que um técnico credenciado conseguisse remover aqueles destroços revoltosos de dentro da máquina.
O que faria eu ali sozinha, fora da resma e fora de uma impressora, como quem diz fora do baralho, com uma caneta em cima e um indivíduo a olhar para mim, como se eu fosse a culpada do seu sofrimento?
Fiquei ali mais a caneta, durante toda a noite, sem saber mais o que pensar e também não tinha mais nada para recordar. Ouvi bichanar, era a caneta. Pensava que as canetas só conseguiam comunicar através de terceiros, ou seja, quando alguém lhes pegava e as fazia escrever. Afinal, enganei-me, aquela caneta pensava, tal como eu, no que estava ali a fazer, uma vez que há anos que se encontrava na gaveta. A tinta, de cor azul, que enchia o cartucho de tinta permanente, havia secado na voragem do tempo em que esteve fechada. Dava dó olhar para aquele aparo desidratado e sujo com a última gota de tinta que havia transportado até uma qualquer folha.
E assim passámos a noite a pensar nas nossas vidas.
Acordámos com os primeiros raios solares a entrar pela janela, que aos poucos começaram a queimar a minha pele, super branca, o que me incomodava bastante.
Apareceu de novo o homem, sentou-se e olhou de novo para mim. Tinha o mesmo ar de sofrimento condimentado com o que parecia ter sido uma noite mal dormida ou uma ressaca, quem sabe. Percebi, do seu murmúrio, que queria escrever mas não tinha inspiração, comentando, para si mesmo que era aterrador olhar para uma folha em branco e não saber o que escrever.
Pegou-me gentilmente, depositou-me numa gaveta vazia, espaçosa e limpa, voltou a colocar a caneta em cima e fechou a gaveta. Agora em voz alta, que deixava transparecer alguma raiva, talvez para que eu ouvisse distintamente, disse que quando a inspiração voltasse pegaria de novo em mim e já não me deixaria nem virgem, nem totalmente branca.
Percebi que o meu destino estava traçado, não iria acabar numa impressora mas sim iria ser parte integrante de uma história. Isto se entretanto a caneta colaborar.
A raiva daquele homem, mas também o sofrimento demonstrado e a forma como me tratou, fez-me ter confiança de que um dia, algo de bom e de importante será depositado na minha face, o que me deixou muito tranquila, porque era minha intenção encravar uma impressora, caso me fosse impressa com uma qualquer baboseira.
Quem sabe acabarei emoldurada.
Até lá, esta história é minha, com a participação especial de uma caneta sem tinta e de um pseudo-autor que, apenas e só lamentou, que eu, folha super branca, o intimidei e lhe retirei, para já, a imaginação.
Já lá dizia o meu avô, folha de papel pardo; “Quem não sabe dançar diz que a sala está torta…”
Sendo eu uma simples folha de papel, que papel me coube?
Obviamente, o papel principal.