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Generalidades

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18
Out24

A formiga no carreiro


Vagueando

Participação XI do Ano II no Desafio 1 foto 1 texto de IMSilva

Nos meus tempos de adolescente, passava umas boas temporadas na casa dos meus avós no Algarve. O tempo passava ao ritmo de uma grande relógio de pêndulo, em que o espaço de uma hora parecia uma eternidade, comparado com o mesmo espaço de uma hora de hoje.

A ciência diz-nos que o tempo que decorre durante uma hora de hoje é exactamente igual ao de uma hora à 50 anos atrás, contudo, no meu cérebro, ainda guardo aquele tempo de modorra, em que nada se passava nem passava ninguém por aquele descampado a cerca de 20km a norte de Albufeira, puro Algarve interior.

Uma pessoa passava-se de pasmo.

Os caminhos eram de terra, bem vermelha, cujo pó era tão fino que se colava facilmente às pernas suadas à medida que, de calções, caminhava em direção a lado nenhum, por aqueles caminhos despidos de gente, de vida, de vegetação. A civilização mais próxima, cerca de 9 km, era a vila de S.Bartolomeu de Messines onde eu chegava de comboio a vapor. 

Cultivava-se a terra, pastava-se umas ovelhas, criava-se um porco e galinhas, sendo que o primeiro era sacrificado no Natal e carne transformada em enchidos e a restante era salgada, frigoríficos era modernice que não chegava ali, até porque a electricidade também não e dinheiro para a pagar não chegava. Já as galinhas punham ovos e de de vez em quando, aparecia uma na canja.

Um primo meu, habilidoso de mãos, construía umas mini aldeias com caixas de fósforos vazias e uma vez,  construiu uma nora, cuja réplica diria que era quase perfeita e com o aliciante de, com umas caricas velhas, conseguir reproduzir o mecanismo que era usado nestes poços para tirar água, através de uns baldes que davam pelo nome de alcatruzes. Mais tarde, aprimorou o mecanismo usando um grilo para fazer mover toda aquela engrenagem. Tenho pena de não ter nenhuma foto, era coisa digna de se ver, não havia Lego nem se ia comprar nada, era tudo feito com materiais usados.

Importa referir, antes que comece a ser insultado pelos amigos do grilos, que não era sempre o mesmo grilo atrelado ao mecanismo. Na altura, havia quem tivesse grilos em pequenas gaiolas e o meu primo tinha vários que alimentava e cujo grilar era agradável de ouvir.

O que é que tudo isto tem a ver com a formiga no carreiro? Tudo!

É que nas proximidades dessa mini aldeia encantada, existia um tronco muito velho completamento coberto de umas formigas bastante grandes, com uma parte do corpo vermelho e que "mordiam" com agressividade. Então para as chatear de vez em quando batíamos com um pau naquele velho tronco e as formigas aceleravam a sua azáfama de forma violenta, obrigando-nos a sair rapidamente do local.

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A foto de hoje, tirada em Espanha, durante o passeio pedestre que fiz em Las Médulas trouxe-me à memória a canção de Zeca Afonso, "A formiga no Carreiro" e a mini aldeia do meu primo.

16
Set18

A casa dos meus avós


Vagueando

P7100357.JPG

 

Guardamos da infância os melhores momentos  da nossa vida. O que parecia mau e que não era afinal assim, parece-nos agora normal. A vida amadurece-nos, deixamos de ver só para a frente, passamos a ver ao lado e depois até atrás e finalmente a 360º.

A casa dos meus avós respira amor, ternura, nostalgia, fala sem saber línguas, sem ter boca, mostra-se sem possuir uma tela ou ecrã onde possa explicar o que viveu. Não tem emoções, mas desperta reações emotivas, contidas ou quem sabe extrovertidas.

Chegar aqui, onde vivemos parte da infância, perder a conta aos ainda poucos anos que ainda contámos, quando ela,casa, tem mais de cem  anos bem contados é como mergulhar na história familiar sem perceber.

É estranho, é fantasmagórico, é surreal mas também é tonificante. As cenas que guardo são dispersas e impedem-me de alimentar uma história que dignifique a obra feita.

Como se pode contar a história de mais de cem anos contados sem saber tudo o que contar, não estive lá sempre a observar. Que estórias guardou esta casa, que estórias pode contar?

As gerações que por aqui passaram antes de deixar a vida, deixaram suor, lágrimas, alegrias e tristezas, muito por desvendar, histórias que não se encontraram com o papel ou com o computador para alimentar a memória dos que ainda cá estão e dos que virão.

Mas está cá tudo, não se tapou, nem se enterrou nada. Descobriu-se as paredes, estão à vista, mas o que ainda estará invisível? É necessário paciência, igual à que já houve e maior do que a existente para desvendar, ou melhor deixar em papel, o que lá está e o que lá esteve.

Cada uivo do vento, cada bater de porta, cada ranger das dobradiças, cada estalo da fechadura, são sons que nos habituámos a ouvir e a sentir. Cada passo, cada porta que se abre ou se fecha, por nossa iniciativa ou pela força do vento, trazem sempre recordações e sentimentos.

Cada dia, cada noite, desfiam os momentos, alentos e tormentos, discussões sobre o solo do pão e o solo da terra. Se o primeiro se queimava porque as tocas não eram bem molhadas e o forno era mal varrido, o segundo era, nem mais nem menos, o barro vermelho que torrado ao sol se transformava em poredo, que nos sujava, quando suados, caminhávamos nas veredas e transpúnhamos os valados existentes.

Estou aqui agora a escrever e a ouvir sons que já não existem mas que se sentem. As ovelhas no palheiro, a mula a bater os cascos com fome, os pintainhos atrás das galinhas que escramalhavam o milho que secava no eirado. Os porcos que roncavam, ansiando por  tremoços e pelas farrobas que secavam ao lado do milho no mesmo eirado.

Ouvem-se passos e vozes do tio Zézinho, da tia Catrina, da prima Lurdes, do primo Manel e da Géninha. A velocidade do som faz com entre rapidamente em casa pelo lado Sul, para conversas animadas e divertidas. Eventualmente combina-se uma ida à praia, de carroça, logo cedo para escapar à calma do meio do dia.

Ouço os sons das muitas carroças a matraquilhar as pedras das veredas e das estradas de terra, pedra e buracos, que eram mais caminhos de cabras. Já não se vêm carroças, nem malhins a brilhar, nem tão pouco os condutores a apertar os breques nas descidas para não forçar os animais a segurar aqueles carros pela barrigueira.

Estou aqui a matutar enquanto descanso e a ouvir, mesmo já surdo, quem dizia que a louça estava em número um, ou que um homem atrapalhado é pior que uma mulher bêbeda. Oiço discussões por causa das regas, das ovelhas, dos marcos, que também são conhecido por mogos. As mesmas terminam em paz nas conversas ao jantar composto por cozinha de batatas, carapaus alimados, azeitonas, presunto, requeijão, queijo de cabra, pão e a salada com pepino, tomate e alface.

Ouço a mota do pexeiro e sua buzina de fole. Traz peixe, alegadamente, fresco de Almufeira e também seco pelo sol e pelo sal, que não se vendeu nas voltas e dias anteriores.

Sentem-se os cheiros, dos chouriços, dos ovos estrelados diretamente nos pratos de alumínio, dos queijos e requeijões e do palheiro. Misturavam-se na casa como se procurassem a fórmula de um perfume nunca inventado mas que podia ser fabricado. Seria hoje um perfume rural delux. Estou a imaginar, a vender por todo o lado, sempre acompanhado de slogans publicitários que o fariam sentir-se idolatrado.

Nesta altura até parece que a casa está assombrada, não está, mas é um assombro que poucos conseguem ver, sentir, conhecer, fruir e admirar.

A falta de luz elétrica, um mal da época, com o calor do Verão permitia-me dormir na rua com as estrelas como lençol, identificar as constelações, a estrela polar e a via láctea.

Era a falta de desenvolvimento o desinteresse pelo mundo rural, a falta de expectativas, era trabalhar para a subsistência. Os anos passados, ainda que já contados, não contam os mais de cem anos desta casa.

 

Recomenda-se o uso de um dicionário de termos algarvios para entender melhor a história ou a estória.

Os nomes foram ficcionados.

 

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