Junho 1966
Vagueando
Para jovens e menos jovens que andam por aí cheios de saudade de um passado que não conheceram aqui vai uma troca de correspondência de um cidadão de Lisboa com um 1º Cabo sedeado em Moçambique, onde fica bem evidente que se hoje não estamos bem, naquela altura estávamos bem pior.
Trata-se de correspondência trocada via aerograma cuja transcrição integral reproduzo abaixo[1]
(Os nomes referidos não correspondem aos que constavam no aerograma)
Caro José
Lisboa, 7/9/1966
Então que tal essa bizarria? Cá por casa estamos todos na mesma, aliás uns mais mesitos a mais velhos.
O tempo em Lisboa está óptimo duma maneira geral, pois estando , normalmente calor, de uma hora para a outra ou chove ou faz nevoeiro, nalguns dias.
Temos agora a Feira Popular, a Feira do Livro e uma Exposição de Floricultura nas terras de cima do Parque Eduardo VII, pelo menos arranjaram o terreno daquela extremidade e puseram lá uma pequena Esplanada.
Abriu há poucas semanas a Piscina da Avenida de Roma, mas foram lá tantos meninos yés-yés e outras espécies, dizer tantos piropos às miúdas, no dia da inauguração, que elas fugiram todas da piscina. Enfim continuamos provincianos chapados.
A vida está cada vez pior mas isso que importa se até vamos ter as marchas populares, pelo Stº António. Esse ano são 19.
Quanto a cinema, já que estamos em maré de festas, estão agora 4 bons filmes no cartaz; “Música no Coração”, há uns meses, com enchentes no Tivoli, “ A Nave dos Loucos” no novo cinema Mundial, (abriu também outro Estúdio 444) que leva outro filme bom “As escravas ainda existem” e no Império vai “África Adeus”, um documentário filme quase no género de “Europa à noite”. O Teatro, continuam as mesmas revistas com coisas vindas dos “balets” do Bairro Alto, comas mesmas piadas para a geral. Esteve no "Avenida "uma boa peça brasileira que ganhou o 1º prémio da Festival Mundial de Teatro Universitário. As praias estão todas no mesmo sítio com água quente pró banho. Ao Domingo à noite as pessoas já cheiram menos a porcaria, nas ruas baixa
A equipa do Sporting perdeu a Taça de Portugal porque os jogadores (sobretudo os militares) chegaram fisicamente arrombados ao fim da época. Mas para o ano é que vamos ganhar tudo, pois vão comprar o Jaime Graç por 500 contos e meia dúzia de jogadores da reserva (O Victória quer o Carlitos, o Ferreira Pinto, o Dani e o Barão e mais 3, se calhar até aceitavam o Carvalho, o Hilário eo Zé Carlos), parece que o Sporting quer mandar uns rapazitos dos juniores, muito geitosos, que não têm jogado na reserva para não se estragarem. Mas parece que o assunto está bem encaminhado. Além disso o Sporting quer comprar dois avançados bons.
O António a Tereza já andam de lambreta. Logo no primeiro dia iam chocando com um saloio na Auto-Estrada, que os mandou logo para um sítio que não vem no mapa – “Barraca”.
O Joaquim esteve de férias e tirou o passaporte para ir à Bélgica. Só depois é que soube que 15 dias na Bélgica custam umas massas. Andou para aí chateado como passaporte no bolso. Disse-lhe para ir ao Algarve mas acabou por não ir, “sim porque ele não é um turista qualquer”. Continua com a mania de emigrar e nós sabemos como ele é aa negação pura do emigrante. Enfim coisas à Joaquim.
Muita gente que me pergunta por notícias tuas. Dizem que já não perguntam à mãe porque ela começa logo a chorar. Quando recebe notícias tuas ou te escreve, idem. Quando recebe o teu abono de família idem. Quando vê o António Jorge, que ainda não se esqueceu de ti, aspas , aspas. Enfim, já sabes como é.
Sei que também a ti te custa a passar o tempo longe de todos, mas um homem é um homem e um macaco é um bicho.
Faz por te distraíres e não pensares no tempo que falta! Viva o Benfica. Então foi muito grande aí a bronca da final com o Sporting de Lourenço Marques? O protesto do Benfica foi uma vergonha. Estou a escrever-te do Café e a perder um daqueles programas de televisão, que são todos “muita bons”.
Não há dinheiro para festas, nem muita vontade – falta de tempo. Cumprimentos dos amigos, um abração da Albertina, da tia do António Jorge, da Lurdes, do Marreco, da mãe, da Augusta, do José e do teu maior amigo , José Campanário.
[1] Aerograma-Eram utilizados pelos militares portugueses, durante a guerra colonial, distribuídos gratuitamente pelo Movimento Nacional Feminino e transportados também gratuitamente pela TAP. Trata-se de um papel muito fino e muito leve, que disponibilizava uma larga área para escrita que, depois de dobrado, permitia identificar o remetente e o destinatário, mantendo confidencial a missiva.