O meu avô, homem de perna alta, de passo vivo e cadenciado era caminheiro profissional, era esse o seu único meio de para se transportar entre lugares.
Quando o acompanhava, ainda jovem, era obrigado a fazer pequenas corridas para o conseguir acompanhar. Sem hesitações nos cruzamentos e entroncamentos de veredas palmilhávamos quilómetros por entre casas isoladas, conhecidas por montes, povoações minúsculas e pequenas aldeias.
Afugentava os cães que se atravessavam no caminho que, ao contrário do ditado, ladravam e mordiam. Os cães não o apoquentavam, tinham-lhe muito respeito, por mais ferozes que parecessem, fazia-os sempre fugir, se fosse necessário à pedrada. Nunca me lembro de ter levado uma dentada, fosse de que cão fosse.
Quando se ia a uma povoação maior o meu avô dizia que se ia ao Povo. Era lugar onde se via muita família (sinónimo de muita gente) e onde existia um mercado e, de tempos a tempos, uma feira, que estava ali, encostada ao Povo onde se vendia gado (porcos, bois, vacas, burros, mulas) e no meio desta, o gado organizado de forma desordenada, circulava gente curiosa como eu e quem queria fazer negócio.
Aprendi com ele o significado das veredas e o prazer de caminhar nelas. Recordo neste texto, que ele reconhecerá, mesmo sem saber ler e sem ter acesso à Internet, nem ao mundo dos vivos, as nossas caminhadas.
Dizia-me que a vereda era um caminho estreito, da largura do espaço que uma pessoa precisa para caminhar e que se aprendia a segui-la, com o tempo e a experiência. Não havia indicações nem tabuletas (também se as houvesse poucos saberiam lê-las) com as direções ou destinos a seguir, não havia GPS, era tudo de memória. Cada pessoa guardava na sua cabeça uma série de veredas que davam a acesso a todos os lugares para onde precisavam de ir.
Se fosse necessário seguir até um local novo, esse mapa mental não tinha gravado o caminho, mas sabia a direção, se para Norte, se para Sul, se para Este ou Oeste e, com base nesses quatro pontos cardeais, se escolhia a vereda certa para onde se queria ir pela primeira vez. Sempre que a vereda se dividia em duas três ou mais direções a escolha era racional, bastava olhar para o Sol que nos dava um dos pontos cardeais e, a partir daí tudo era fácil. As veredas nunca se enganavam, muito menos eram capazes de enganar alguém, até porque, quem as observava também não se deixava enganar.
Grandes duplas formavam as veredas e as pessoas que nelas caminhavam, verdadeiras equipas recheadas de estrelas ou não fosse o Sol uma bela estrela.
Dizia o meu avô que a vereda era o melhor caminho, o mais curto, o mais belo, o mais conversador, sim aparecia sempre alguém em sentido contrário com o mesmo espírito, ir de um lado ao outro, pelo caminho mais curto e mais belo, mas com tempo para dois dedos de conversa. Contudo, estas conversas nunca incluíam qualquer pergunta sobre o caminho a seguir, toda a gente seguia o seu próprio caminho.
A vereda era o caminho de todos, para todas os destinos, que passava por todas as casas, aldeias, serras, rios, fontes e riachos.
As pontes eram raras, as que existiam eram improvisadas e, obviamente, estreitas. Mas quando não estavam lá, a dar a passagem para a outra margem, eram as poldras que nos transformavam em equilibristas e só com muito malabarismo se chegava com os pés secos à outra margem.
Quando, era preciso transportar alguma coisa, por exemplo água, o burro seguia a vereda com o meu avô atrás sem que fosse necessário indicar-lhe o caminho. Quando se lhe montavam as cangalhas em cima da albarda onde se anichavam dois potes de barro, ele sabia que era para ir ao poço. As veredas também nunca enganavam os burros, até porque, tal como os homens, eles também não se deixavam enganar.
As veredas eram caminhos abertos pela passagem de muita gente a pé, não estavam sujeitos a planos das Juntas de Freguesia nem das Câmaras, não exigiam expropriações, nem projetos, nem autorizações dos proprietários dos terrenos onde passavam. Eram pura cooperação entre vizinhos e afastados. Eram tão-somente isso, serventias, o espelho das necessidades das gentes do Algarve para comunicar entre si e identificavam-se por uma ténue linha sem vegetação, composta por pó vermelho, tão característico do Algarve, que parecia fumegar debaixo dos nossos pés, tão fino que espirrava debaixo dos sapato a cada passada.
A vereda era uma linha simples, umas vezes reta, outras vezes curva, outras vezes às curvas e contracurvas para contornar obstáculos como árvores, silvados, desníveis e pedras, trabalho de muitos passos, de muita gente que não passeava por ali, mas passava por ali, muito antes de mim e do meu avô, há vários anos, várias gerações de passos deixando a sua pegada, muito ecológica, em tantos quilómetros de veredas.
As veredas eram a marca, de muita gente, dos seus destinos, das suas histórias e das suas estórias dos seus encontros e, porque não dizê-lo, dos seus medos, frustrações, raivas e alegrias tudo registado naquela fina falta de vegetação e da transformação da terra dura em pó fino de tanta pisadela que levou.
A vereda tinha sempre acompanhamento musical, ora dos grilos e cigarras ora da passarada que saltitava de árvore em árvore, de pedra em pedra, do tilintar dos chocalhos dos rebanhos e ainda tínhamos espetáculos de cor, movimento e luz. Borboletas multicoloridas esvoaçavam à nossa volta, as nuvens que filtravam o sol e nos faziam sombra, alteravam a cor da paisagem, cenas fantasmagóricas provocadas pelas trovoadas ou molhadas, se instalavam ali mesmo por cima de nós e os relâmpagos que nos faziam temer vir a servir de para raios entre a descarga e a (terra da)vereda.
As veredas também tinham cheiro, consoante a época do ano, a esteva, a figos, a amêndoa, a terra molhada, quando chovia no Verão, a trampa de ovelha, mula, de burro e de cão. Não é possível reproduzir estes cheiros num texto, mas estas misturas ao ar livre nem sequer se pode dizer que fossem desagradáveis, faziam parte do caminho e pronto. Se algum algarvio, com mais de 50 anos, ler este post, é bem capaz de imaginar e de sentir os cheiros que aqui descrevo.
Nas veredas foram ficando histórias de homens e mulheres, crianças e adolescentes, amores e desamores e de tantos pastores que aliviaram as dores e o cansaço, esperando sentados nalgum valado já meio descambado enquanto as suas ovelhas pastavam e saltavam, vezes sem conta aquela valado, escramalhando (sinónimo de espalhar, fazer cair) o alinhamento das pedras que o compunham. Assim tivéssemos aprendido a ler terra pisada e teríamos extraído dali, daquela linha estreita, muito conhecimento.
Aprendi a gostar de caminhar naqueles caminhos de pó vermelho, tão característico do Algarve, chamava-se-lhe “poredo”, adorava bater os pés contra aquele pó fino, espalhando-o pelo ar, sujando os sapatos e as calças, enfim, mostrar aos graúdos que tinha feito uma grande caminhada. As veredas eram caminhos de movimento, ambientalmente sustentáveis, por lá passavam, pessoas e bestas, mulas e burros, que cabiam naquela estreitíssima largura de caminho onde nem as pegadas ficavam visíveis , porque tudo eram só montinhos de pó, completamente desalinhados.
Se encontrar uma vereda (se calhar conhece-a por trilho) palmilhe-a, observe-a, deixe-se encantar, siga-a. No fim não vai encontrar o caldeirão de ouro, mesmo que o arco íris a intersete nalgum ponto, mas vai encontrar histórias e, quem sabe, ainda vai descobrir que alguém da sua família, mais próxima ou mais afasta deixou ali a sua pegada há muito, muito tempo.
As veredas morreram, porque já ninguém anda a pé por necessidade, porque as bestas foram impedidas de trabalhar e os rebanhos também praticamente desapareceram.
As veredas deram lugar às estradas, onde não passeiam pessoas, nem bestas, nem rebanhos e as estradas estão reservadas aos carros que levam as pessoas aos seus destinos, muitas vezes conduzidas por bestas.