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Generalidades

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24
Jul22

As histórias e toponímias que cabem em 692 metros da Rua Albino José Batista - Sintra


Vagueando

Placa Fim da rua.jpg

A Rua Albino José Batista, com 692 metros de comprimento e de largura irregular, inicia-se junto ao Jardim da Vigia e termina na Estrada de Chão de Meninos, junto à Casa das Queijadas do Preto.

A história (possível) sobre esta rua, completa uma trilogia de posts que já escrevi, ligando assim as histórias do Jardim da Vigia Ler aqui  e da Casa das Queijadas do Preto Ler aqui.  Nasceu de uma conversa com D. Carlota, 86 anos, a sua habitante mais velha, residente na mesma há 64 anos, que me disse com a certeza de uma memória fresca e bem viva, que antigamente se chamava Rua Campo do Arrabalde.

Não existe na CM de Sintra qualquer registo sobre a atribuição desta toponímia à rua, ainda que tenham indicado que este topónimo seja anterior a 1969, data a partir da qual estes registo foram organizados.

José Alfredo da Costa Azevedo, ex-presidente da CM Sintra, refere no seu livro Bairros de Sintra, que o comerciante lisboeta com o mesmo nome, residiu nesta rua, sendo que, segundo a D. Carlota, viveu no nº 47, na altura Vila Eliza e atualmente Vila Stª Maria.

Albino José Batista, fundou em 6 de Julho de 1876, uma loja na Rua Nova do Almada, nº 92, razão pela qual lhe atribuiu o nome de Loja 92, especializada em artigos de senhora. Sugiro uma consulta ao blogue Restos de Coleção neste link Albino J Batista

Curioso é o facto do dia da inauguração da loja (dia 6) e nome atribuído à mesma (92), formar o número igual ao comprimento da rua com o seu nome, os tais 692 metros.

Para confirmar a informação dada pela D. Carlota, recorri a documentos da família da minha mulher e de alguns dos moradores, que me deram acesso a escrituras e contribuições prediais dos anos 30 e até mesmo anteriores. Desta consulta conclui que a rua era designada por Campo do Arrabalde ou Sítio do Campo do Arrabalde e também, popularmente por Rua Bairro do Ingleses e que os terrenos que a ladeavam eram conhecidos por Terras de Cima e Terras de Baixo.

Deduzo que a designação oficial seria mesmo Rua Campo do Arrabalde, isto porque a história contada pela D. Carlota parece confirmá-lo; Quando esta necessitou de realizar um acto público que envolvia a sua casa, referiu que se situava na Rua Bairro dos Ingleses, toponímia que não constava oficialmente e que impediu a realização deste ato. Neste sentido, foi obrigada a fazer um novo registo da casa na Rua Campo do Arrabalde.

Num testamento de 1950 de um familiar da minha mulher, faz-se referência a uma casa situada no Campo do Arrabalde (não referia rua) ou Bairro dos Ingleses. Por curiosidade, nesse mesmo testamento, também é referida uma casa na Escadinhas do Arrabalde, as quais, em sessão de Câmara de 16 de Abril de 1955, adotaram a toponímia de Escadinhas da Vigia, sendo que estas Escadinhas começam junto ao Miradouro da Vigia, onde se inicia também a Rua Albino José Batista.

O Arrabalde, começava no Largo Sousa Brandão (local onde existia uma Casa de Cantoneiros, transformada em Posto de Turismo de Sintra) e estendia-se para nascente, abrangendo toda esta zona onde se situa a rua e o jardim.

Há cerca de 7 anos, cruzei-me na rua Albino José Batista, com um casal italiano que me perguntou onde era a Vila Alecrim do Norte. Disse-lhes que não havia nenhuma Vila com este nome, nesta rua.

Perante a sua insistência e convicção inabalável de que estavam certos, tinham viajado propositadamente até Sintra para ver o local, telefonei à minha mulher, nascida nesta rua e perguntei-lhe onde era esta Vila. A resposta foi, para minha vergonha e contentamento do casal, que era muito perto do local onde tinha nascido e pela sua explicação percebi que estávamos mesmo à porta da Vila Alecrim do Norte e, pela primeira vez em muitos anos, reparei que estava lá escrito Vila Alecrim do Norte.

Curioso, perguntei-lhes a razão do seu interesse para viajar de Itália em busca deste local. Referiram-me que leram um livro cujo título era o “Diário de Sintra”, que relata a experiência de 3 jovens ingleses S. Spender, C. Isherwood e W.H.Aunden, que viveram nesta casa ente Dezembro de 1935 e Agosto de 1936.

Efectivamente nos anos 30 e até aos anos 70, viveram nesta rua vários ingleses, nomeadamente na Casa Cerrado da Eira e na Vila Alecrim do Norte, que conviveram com portugueses, alguns dos quais ainda vivos.

No Cerrado da Eira vivia a Srª Enid Mitchell, que manteve com os habitantes portugueses uma excelente relação de amizade e até de solidariedade social, chegando a doar casas a alguns deles, quer nesta rua quer em ruas adjacentes, alguns dos quais ainda as habitam. No alto de S.Pedro, mesmo junto à escola, existia uma taberna conhecida por Carlos Mitchell, dado que o dono, o Sr Carlos, chegou a ser motorista da Sra Mitchell.

Enid Mitchell pintava quadros com motivos de Sintra e foi a mentora de um pintor natural de S.Pedro de Penaferrim, Pinheiro de Santa Maria, que foi viver para os Açores, nos anos 70,  mais precisamente na Ilha Graciosa, infelizmente, falecido já no decorrer de 2022.

Devido à “colónia” de ingleses a viver nesta rua e arredores, conta-se que foi um dinamarquês de nome Anderson, residente na casa conhecida por Achadinha, com acesso quer por esta rua como pela Rua Dr. José Neto Milheiriço, que resolveu “batizar” a rua, com o nome de Rua Bairro dos Ingleses, e terá mesmo colocado uma placa com esta designação.

Não estava mal visto e parecia fazer sentido e não terá havido contestação popular ou eventualmente, dos serviços oficiais, pelo que a designação pegou!

A toponímia não oficial de Rua Bairro dos Ingleses, explica-se então assim.

Nos anos 30, vieram viver para uma casa, alugada pela Srª Mitchell, a Vila Alecrim do Norte, os 3 jovens escritores ingleses, Stephen Spender, Christopher Isherwood e Wystan Hugh Aunden. Este jovens fugiam do preconceito existente em Inglaterra sobre os homossexuais e vieram para Sintra em busca da tranquilidade e inspiração que lhes permitisse escrever obras teatrais e poesia e que mais tarde concretizaram.

Enquanto habitaram esta casa, entre Dezembro de 1935 e Março de 1936, escreveram um diário (Diário de Sintra) que deu origem a um livro, editado em italiano e traduzido para espanhol. Este livro só foi possível após o filho de Stephen Spender, Mattew Spender, radicado em Itália, ter descoberto por volta de 2012, o diário escrito pelo seu pai, enquanto aqui viveu.

Depois da história contada pela D. Carlota, resolvi procurar o livro, o qual, infelizmente não está traduzido para português, e adquiri a versão espanhola.

Ao ler as histórias foi como tivesse visto filme da época, a forma como os ingleses nos viam “os portugueses eram engraçados e simpáticos, dado que em Inglaterra segue-se a tradição de que todos os estrangeiros não o são”, e as tarefas levadas a cabo por estes ingleses, que iam desde a construção de casotas em madeira para acolher a criação de coelhos, à construção de galinheiros para criação de galinhas, à construção de um canil, para além das tarefas de jardinagem e, pelo meio, iam escrevendo, quer o diário, quer outras obras.

C.Isherwood escreve uma carta à sua mãe em Dezembro de 1935, que consta do livro, a relatar que encontraram casa em Sintra, mais precisamente a Vila Alecrim do Norte e chama a atenção da mãe para a morada que segue na carta. Infelizmente, pese embora tenha conseguido contatar Matthew Spender, não foi possível apurar qual a rua ou local que era referido naquela carta.

Segundo o Diário de Sintra, Enid Mitchell terá referido aos jovens ingleses que foi a segunda mulher a tirar a carta de condução em Portugal.

Enid Mitchell, viveu com os pais em Portugal, com o início da guerra vai para Inglaterra servir o seu país como enfermeira regime de voluntariado e regressa a Portugal com o fim da mesma.

Após a morte dos seus pais, vende a casa onde viviam, “O Cerrado da Eira”, a outro inglês o Senhor Shaw e vai viver numa pequena casa que autonomizou do Cerrado da Eira, com uma criada portuguesa, de nome Domingas. Esta casa foi deixada em testamento à sua criada Domingas que, por sua vez, a deixou em testamento a outro habitante de S. Pedro que ainda nela reside.

Quando se dá o 25 de Abril em Portugal, Shaw decide vender "O Cerrado da Eira", que foi comprado pela família Rocha Neves, cujos herdeiros a habitaram até há pouco tempo.

Regressando à toponímia Albino José Batista. Existem mapas camarários, um dos quais editado pela C.M. Sintra em 1978, que relativamente a esta rua, coincide com outro publicado na página 304, do livro de José Alfredo da Costa Azevedo – Bairros de Sintra, que mostram que a rua Albino José Batista, não chegava até à Casa das Queijadas do Preto, onde hoje termina.

Principiava igualmente junto ao Jardim da Vigia, mas terminava no final da Travessa da Boavista. E era esta Travessa da Boavista que ia terminar em Chão de Meninos, junto à Casa das Queijadas do Preto. (ver foto abaixo)

20220721_183959.jpg

A azul a extensão da Rua Albino José Batista no mapa da CMSintra de 1978.

A vermelho a Travessa da Boavista no mesmo mapa

A verde a atual Rua Albino José Batista

Ainda assim, em conversas tidas com alguns residentes das redondezas asseguraram-me que a parte final da rua, ou seja, junto à Casa das Queijadas do Preto, não era a Travessa da Boavista, mas sim Rua do Forno da Cal, dada a existência de um forno mesmo junto ao parque de estacionamento da desta casa de queijadas.

Como já referi acima as pesquisas que efectuei, na CMSintra, Biblioteca Municipal e no Arquivo Histórico da Câmara, não consegui apurar, quando é que foi atribuída a toponímia Albino José Batista, muito menos se se estendeu até Chão de Meninos. Nem tão pouco a empresa que fez as placas toponímicas, Cerâmica Isabel Garcia, me conseguiu esclarecer. A ser verdade que a Travessa da Boa Vista se estendia até à Casa das Queijadas do Preto, também faria sentido, não só devido à existência da Quinta da Boavista, mas também porque que nalguns locais da rua é possível ter uma excelente vista, para Norte e Poente. À vista desarmada é possível ver as Berlengas, o Convento de Mafra e a serra de Montejunto.

Diz o povo e muito bem, como posso confirmar, que quando daqui se avista as Berlengas (normalmente a bruma ou o nevoeiro o impedem) é sinal de chuva o que é verdade.

Para baralhar ainda mais esta história, um contrato de promessa de compra e venda, datado de 30 de Novembro de 1979, que também consultei, faz-se referência a um mesmo imóvel, como estando em ruas diferentes. Efectivamente o promitente-comprador era o arrendatário do andar superior, é referido no contrato como estando sedeado na Rua Albino José Batista e o imóvel completo, é referido no mesmo contrato como estando sedeado na Rua Bairro dos Ingleses.

Em resumo; Parece não existir dúvidas que a Rua Albino José Batista recebeu esta toponímia devido ao facto de este comerciante aqui ter vivido e não teria a extensão atual. Anteriormente seria era designada por Rua Campo do Arrabalde, conhecida popularmente por Rua do Bairros dos Ingleses. Mais tarde, penso que nos anos 70, especulo eu, que a CM de Sintra terá constatado que a residência do referido comerciante estava localizada não na rua com o seu nome, mas sim na Travessa da Boavista ou Rua do Forno da Cal e resolveu prolonga-la. Lembro perfeitamente de ser colocada a placa toponímica junto à Casa das Queijadas do Preto, ainda que não consiga datar o acontecimento.

Já que a Rua principia junto ao jardim da Vigia e porque estamos a falar de uma contadora de histórias invisual, vai para 10 anos, no decorrer das conversas, a mesma perguntou-me pela pedra dos Cinco Dedos que era visível deste Jardim quando foi inaugurado em Maio de 1939, (ver foto abaixo do local onde foi construido o Jardim da Vigia e onde é possível ver a pedra dos cinco dedos).

Arrabalde.jpg

 

Disse-lhe que a pedra não se vê.

Respondeu-me, que era impossível aquela mão de pedra é tão grande, não me diga que caiu.

Não D. Carlota, não caiu, foram as árvores que cresceram muito e a taparam.

Ficou triste!

Sendo a cegueira uma doença, infelizmente no caso da D. Carlota incurável, ela não esperava que natureza cegasse todos aqueles que ainda vendo, já não conseguem ver a pedra dos cinco dedos.

21
Jul22

Um conto ou um Desconto


Vagueando

Aquele Conto era filho de mãe escritora e de pai matemático. Podia ter herdado o gosto da mãe pela cultura e/ou o rigor científico do pai. Mas não, a anarquia foi sempre a sua filosofia de vida, com laivos de debochado.

Talvez devido ao seu espírito anárquico e acima de tudo por ser um debochado, era alvo do interesse público, melhor da coscuvilhice pública. É que isto do interesse público tem o seu interesse, porque perante um mesmo copo de água há sempre quem o veja meio, meio cheio ou meio vazio. Ou seja servia para todos os gostos e embirrações e gostos (quiçá as embirrações também) não se discutem, exceto quando se lava roupa suja nas redes sociais.

Daí que um escritor, manhoso mas minimamente honesto, ao contrário dos jornalistas de tabloides que seguiam e engendravam casos à volta do Conto, interessou-se por escrever um conto sobre o Conto, pelo que lançou mãos à obra.

Como um conto já o é, teve que fazer de conta que o conto sobre o Conto era isso mesmo, um conto. Contudo, o dito conto sobre o Conto, mais não era que um biografia.

A infância, as diabruras constantes demonstravam que o Conto era, autenticamente, um estarrabazido (palavra que a minha avó usava para designar este tipo de sujeitos), um sem eira nem beira.

A adolescência não modificou o Conto, para melhor entenda-se. Sem rumo, sem norte, ao sabor do vento, mesmo quando este não soprava, as suas atitudes e posturas, andavam no limbo entre o mau comportamento e os pequenos delitos.

Já na idade adulta, esmerou a sua faceta criminosa, começou a partir corações, quer por via dos muitos amores desfeitos por traições, que as mulheres perdoavam, quer por via das burlas (amorosas – amor para que te quero) com que as brindava, em suma, um charlatão/engatatão.

O Conto vivia à conta dos contos que escramalhava (termo algarvio que designa espalhar/desarrumar) às muitas mulheres que caiam na esparrela de se deixar enrolar, entregando-lhe as suas poupanças, contra a promessa de que o Conto faria bons negócios com o mesmo, enfim o típico conto do vigário.

Quando o Conto viu, em grande destaque no escaparate de uma livraria um livro sobre a sua malfadada vida, resolveu descontar tudo e, vai daí, sob pseudónimo, lançou um desconto, ou seja a sua versão, aldrabada mas cor-de-rosa da sua vida, incluindo a amorosa, mais a versão aldrabada, do sucesso da suposta vida de empresário.

O curioso nestes dois contos é que se provou que após a morte do Conto, a versão biográfica e honesta do conto, morreu também, enquanto a versão aldrabada continua a fazer sucesso, indo já 25ª Edição.

A mentira faz parte daquilo a que outrora chamávamos a voz da razão.

Existe mesmo uma FdAdCA – Fundação de Admiradores do Conto Aldrabado, criada por si com os fundos obtidos via trafulhice e que conta com uma legião de seguidores, ainda mais pantomineiros do que o Conto.

Esta legião, assegura a continuidade da sua obra, usando as velhas técnicas, não deixa de ser curioso como a inovação não faz falta nenhuma para este fim, ainda que se possa recorrer a outras ferramentas mais modernas, mas agora para poderem beneficiar financeiramente das suas práticas, usam apenas moeda virtual.

17
Jul22

Preciso de calor humano porque calor já eu tenho


Vagueando

P3063645[28440].JPG

Foto da  minha autoria e que serviu de inspiração para este conto, onde se mistura ficção com alguma realidade. 

 Quantos silêncios serão necessários para que me escutem? Era o sentimento daquela casa.

As casas não ouvem nem falam porque não têm voz. Não tendo uma coisa nem outra contam histórias, quer sobre si próprias, quer sobre a vida lá dentro. Não são diferentes do mais comum dos mortais que, como as casas, comunicam mesmo quando não falam.

Havia sido construída num outeiro no Baixo Alentejo, a cerca de 9 km de Belmeque, a aldeia mais perto. As paredes eram em alvenaria de pedra aparelhada, telhado de duas águas forrado a telha de canudo, suportado por um vigamento em madeira, estruturado em asna com pendural.

Dispunha de 4 portas, 3 viradas a Sul e uma a Norte. A porta principal, a mais usada, dava acesso à cozinha; os alimentos, a maioria vindos de cultivo próprio, entravam logo ali para serem cozinhados sem ser necessário sujar o resto da casa. Outra porta facilitava o acesso ao corredor que atravessava toda a casa, terminando na porta norte. Este corredor era o distribuidor de acesso a todas as outras divisões e servia de ar condicionado no Verão, bastava abrir as duas portas para ter uma corrente de ar fresca. A terceira porta dava serventia a um pequeno curral onde se acolhia a criação , uma mula e 3 ovelhas. A casa dispunha ainda, do lado norte, de um eirado com cisterna destinado a no Inverno, recolher água para consumo e no Verão para secar alfarrobas, amêndoas, milho, bolota e para jantares ao ar livre e ainda para dormir mais fresco, tendo as estrelas como teto.

As brisas frescas e suaves na Primavera e Verão, transportavam os cheiros do campo que eram condimentados com o canto das cigarras e dos grilos. Tinha sol todo o ano, sentia-se como estivesse a ser grelhada, excepto quando as nuvens cerravam fileiras.

Miguel era filho da roda mas isso nunca o impediu de ser um homem feliz. Fixou-se no Alentejo, na casa da sua mulher Emília, com quem casou em 1931, casamento que lhe deu duas filhas, Isilda e Conceição. Era um homem magro, alto, esbelto, moreno, poderia ter sido manequim. Era assim, não porque se coibisse de comer ou por fazer dietas vegans, era assim porque caminhava muito.

As longas pernas eram o seu meio de transporte, aliás, não havia outro.

Era afoito, não tinha medos, nem sequer da morte. Contudo, afligia-o não saber o que era estar morto e de que forma saberia que tinha morrido. Não sabia ler mas era um poeta, poeta popular. Fazia versos espontâneos a mangar dos amigos que se metiam com ele e, com especial prazer quando os netos lhe pediam. Não sabia nada de música mas cantava. Não sabia tocar instrumentos, mas acompanhava as suas canções com um instrumento improvisado que transportava sempre consigo, o sovaco.

Extraía sons colocando a sua mão direita debaixo do sovaco esquerdo, colocando este braço e antebraço em “V” movimentava-o para baixo e para cima, de forma ritmada, ao mesmo tempo que a mão direita controlava a saída de ar debaixo do sovaco, provocada por este movimento. Os sons eram um misto de trompete com corneta, mas também muito parecidos com os sons que os sofredores de flatulência emitem nos momentos de maior aperto. Eram estes últimos sons que faziam delirar os seus netinhos que pediam que os repetisse vezes sem fim, às horas das refeições.

As refeições significavam convívio familiar. Eram os únicos momentos em que não se estava a trabalhar e serviam também a Miguel para contemplar a estrutura de madeira que suportava aquele telhado com um equilíbrio geométrico tão perfeito que parecia ser impossível aguentar todo aquele peso de forma tão simples e harmoniosa.

O seu animal de estimação não era um cão nem um gato. Era uma mula de grande porte, musculada pelo trabalho de lavoura mas excelentemente cuidada, sempre limpa e escovada e livre, já que pastava no campo completamente solta desde de tenra idade. Nem parecia uma besta de trabalho mas sim um daqueles cavalos levados a concursos de beleza. Seguia o dono como um cão, via nele um Deus protector, não se deixava levar por ninguém. Quando o Miguel parava ela parava imediatamente e assim ficava, sem estar amarrada, à espera do dono. Miguel chamava-lhe a minha cãozinha.

A vida de Miguel parecia um daqueles gráficos de linhas, com variações em “V” muito pronunciadas. Cresceu no meio de muitas crianças nas mesmas circunstâncias, fez amizades mas não as conservou, não havia como. Os telefones eram poucos, os carteiros não chegavam ao campo. Longe era o lugar onde todos os seus companheiros de infância se tinham instalado.

Foi no Algarve serrano, e longe do Allgarve das praias, que começou a trabalhar, a cozer fornos . Este trabalho implicava o corte de mato, silvados e apanha de lenha seca que era transportada às costas ou em carroças, consoante a distância até ao forno, em quantidade suficiente para o manter a arder, no mínimo, durante dois dias e duas noites. Mesmo depois de casar e já com as filhas nascidas continuou este trabalho, o que implicava estar fora de casa semanas seguidas. Só para chegar ao forno e regressar a casa, gastava quatro dias a caminhar.

Mais tarde, começou a dedicar-se à agricultura de subsistência nos campos que tinha à volta de casa e  aumentou a produção de griséus , tremoços, as alfarrobas e amêndoas começavam a render bom dinheiro, que era escondido em frascos de vidro de café solúvel e nas latas que continham chocolate em pó para misturar com água ou leite. Para o esconder de eventuais amigos do alheio era embrulhado dentro de pequenas bolsas de pano, costuradas pela sua mulher, que depois eram metidas no meio de feijão e grão, guardado nestas embalagens.

Foi nessa altura que a linha gráfica representativa da felicidade e de algum conforto, subiu ao pico máximo, ainda que a casa estivesse mais vazia, as suas filhas tinham já rumado a Lisboa.

Na altura de férias juntavam-se todos naquela casa. Uma vez que o seu trabalho era logo ali, à volta da casa, tinha tempo para, à volta da mesa, contar as suas histórias, cantar e tocar para os seus netos ao mesmo tempo que saboreava as refeições com os sabores e odores que nos são hoje vendidos como gourmet.

A morte prematura da sua filha Isilda veio trazer-lhe muitas angústias. Pela primeira vez pensou na sua própria morte. Nada voltou a ser como dantes, mesmo que a família restante fosse aparecendo frequentemente, a única coisa que ainda lhe dava algum amparo às suas longas pernas era a sua Emília. Aquelas pernas que calcorreavam longas veredas, durante dias recusavam-se agora a andar. A maleita não era nos membros inferiores, era psicológica. Foi nessa altura que todas as suas dúvidas sobre o que era a morte o começaram a atormentar. Comentava com a mulher que a morte, era o corpo frio, era não aparecer, era não conseguir comunicar, era não ser visto, era estar deitado sem se mexer, mas como é que se sabe que já morremos?

Nunca obtinha resposta, excepto da sua mulher que dizia; mechas para a conversa.

A morte da Emília, aos 89 anos, embora aceitável do ponto de vista do que era a esperança média de vida, deixou-o sozinho de novo, tal como quando nasceu. Disseram-lhe que a Emília tinha morrido, mas quem lhe disse a ela que estava morta? Toda a gente lhe dizia que estar morto era o contrário de estar vivo. Mas esse não era o seu problema. O seu problema é que ninguém lhe dizia o que era o contrário de estar vivo. Queria ter a certeza, que seria ele a saber e a comunicar, pelo menos a si, que estaria morto e que estando morto, tudo se desligava, tudo se apagava, que nenhum dos meus sensores ficava activo como a caixa negra de um avião que depois de um acidente, fica a emitir durante 30 dias impulsos sonoros na frequência 37,5Hz se estiver submersa e é capaz de resistir, durante 30 minutos a temperaturas de 1.100 graus Celsius.

Falou com o médico que assinou a certidão de óbito da mulher. Este explicou-lhe que ela não sabia que tinha morrido. Fora ele como médico, de acordo com a sua experiência, a saber que ela tinha morrido porque não respirava.

Miguel, não ficou convencido, pensou logo nas galinhas, corta-se-lhes a cabeça, não respiram, mas estão vivas.

O que é facto é que a casa também se ressentiu desta falta de calor humano e foi-se degradando.

Dois meses depois, ao jantar, Miguel passeava o seu olhar ao redor da cozinha. Cansado, fixou-se no telhado que tanto apreciava. A casa sentiu-se lisonjeada ao ser olhada e ficou na expectativa de que ele reparasse nas telhas partidas que deixavam passar a água, apodrecendo a sua estrutura de madeira. Ele que, noutros tempos achara a estrutura em asna tão bela e elegante, agora não lhe ligava absolutamente nada. Se lhe caísse em cima era uma sorte, pensava. Foi dormir.

No dia seguinte acordou triste para não variar. Abriu a porta, viu o Sol a começar a subir no horizonte, as andorinhas a esvoaçar à volta dos ninhos feitos nos beirais da casa, ouviu os grilos e as cigarras. Sem rumo, nem ânimo, começou a andar, as pernas pareciam que pesavam mais do que o costume, apenas o cheiro a eucalipto, e a brisa na cara que trazia também um ligeiro odor a poejo, o animou um pouco. Quando deu por ele estava na aldeia de Belmeque.

Viu um carro funerário, costumava vê-lo a passar quando ia à aldeia, tal como se fosse um autocarro de passageiros, mas sem horário nem paragens definidas. Voltou para casa, quando chegou, viu um carro à porta, era um dos seus netos, com a namorada. Com uma alegria imensa, disse logo: – Ficam cá esta noite, vou já tratar da janta . — Sim avô, fazemos-te companhia.

Falou sobre as suas dúvidas ao neto. Este fez umas pesquisas na internet e explicou-lhe tudo o que ele queria saber, mas sabia que não tinha a resposta certa para lhe dar. Miguel ouviu e ficou a saber o que já sabia. Ninguém toma conhecimento que morre. O neto continuou. Quando não temos pulsação nem respiração por algum tempo ocorre a morte cerebral, ainda que alguns dos nossos órgãos fiquem temporariamente activos. É por isso que é possível transplantar órgãos de mortos para outras pessoas que deles necessitam.

Os médicos e estudiosos têm relatado casos de pessoas que estiveram muito mal, referindo que estas quando recuperam descrevem sensações de paz e ausência de dor; de viajar dentro de um túnel, de ver o seu próprio corpo fora dele, de relatar com precisão os actos médicos efectuados no seu corpo, de ver familiares já falecidos.

Ficou a saber mais umas coisas, mas não o que lhe interessava.

No dia seguinte, despediu-se do neto, com um abraço muito forte sem sentir esforço ou pressão, pese embora estivesse a apertá-lo muito.

Voltou para a cozinha para arrumar a louça do pequeno-almoço, mas desistiu e sentou-se.

Olhou de novo para o tecto.

Virou-se para a casa e disse-lhe; – Sabes, estou como tu, velho, frio, desamparado. Abracei o meu neto com todas as minhas forças e não o senti, parecia que estava a apertar uma esponja.

Tenho a comunicar-te que morreste, sim sou eu, o teto, o telhado, que te estou a comunicar que morreste. Estás sem calor humano, tal como eu, pese embora o calor abrasador lá fora. – Se calhar tens razão. Nasci sem pais, talvez volte a nascer outra vez, rodeado de calor humano, porque calor sempre tive. Mas agora tenho medo, medo de não aguentar uma eventual infância feliz.

14
Jul22

O silêncio é de ouro


Vagueando

Numa altura em que toda a gente opina sobre tudo o que não interessa nada, muita gente se indigna por tudo e por nada, quando temos uma guerra na Europa que parecia impossível, achei interessante recuperar este título.

E, como o silêncio é de ouro, mais não digo para não desvalorizar, nem o ouro, muito menos o significado desta frase.

05
Jul22

O que sentes quando escreves


Vagueando

Tema 27 Desafio da Abelha

A escrita, (se é que posso chamar escrita aquilo que escrevo) é um exercíco de tortura a que me submeto.

Não porque aprove a tortura, mas porque o ato de me sentar em frente a uma folha em branco (aliás já escrevi um post sobre o drama do uma folha em branco) é penoso e, simultâneamente desafiante. Escrever é extremamente cansativo, daí que escreva apenas quando me dá na gana e a inspiração acontece.

Não é fácil juntar a vontade de escrever com a inspiração, mas sento-me frequentemente em frente a uma folha em branco, mesmo que dali não saia nada, ficam notas soltas que um dia se juntam e formam algo que gosto e que partilho.

O tempo em que permaneço sentado em frente à folha em branco tem sido curto, muito curto, por diversas razões. Contudo, as notas soltas são muitas, tantas que também não tem sobrado tempo para as juntar. 

Esta é minha resposta a este desafio. Resta-me acabar com a tortura, esperar que consiga cozinhar as notas soltas, quem sabe, possam servir para algum dos temas seguintes. 

Boas escritas.

https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169

 

03
Jul22

Constrangimentos


Vagueando

Não existe no Mundo nada comparável nem melhor que os portugueses para dizerem mal de si próprios. Bem dizer mal se si próprios não é bem assim, dizer mal dos outros é que está correto.

Na estrada, por exemplo, todos temos medo dos outros que conduzem mal, que não respeitam ninguém e, por isso, lá está é que há acidentes.

Sobre a filas de espera no aeroporto, a culpa é do governo, porque não acompanha, não controla, não privatiza, não faz o novo aeroporto. Se alguém decide que o aeroporto é aqui ou acolá, é logo metido na linha. O correto é deixar a ideia do aeroporto andar no ar, (já anda desde 1969) ainda que os aeroportos não voem, ao contrário das vacas e dos aviões.

Estou aqui a falar para quê?

Para dizer que os voos cancelados no aeroporto de Lisboa, se devem a vários constrangimentos nos aeroportos internacionais.

Se os constrangimentos fossem exclusivos do Aeroporto de Lisboa (nesse caso seria mau planeamento), lá estariam as televisões em direto a entrevistar os passageiros para mostrar como somos mesmo uma trampa e aos políticos aplicar-se-ia uma palavra ainda pior.

Nem  Michael O’Leary, CEO da Ryanair, que é o Marcelo da aviação, nomeadamente a comentar assuntos da TAP e do Aeroporto de Lisboa, se chegou à frente com nenhuma das suas afirmações bombásticas, a malhar nos tugas e na TAP.

Afinal, os constrangimentos, são greves de funcionários de aeroportos europeus e de companhias aéreas, anúncios de greves na Ryanair (pensava eu que nesta empresa era tudo muito organizado, muito cool) e falta de pessoal, sendo que nos EUA estão ser intensificadas campanhas de recrutamento, devido à escassez de pessoal. O mercado que funciona tão bem a aumentar os preços ao consumidor devido a escassez de bens, pelos vistos não funciona face à escassez de mão de obra.

Fica então a ideia, as greves, mau planeamento, falta de pessoal, caos nos aeroportos, fora de Portugal, não são culpa de ninguém, são, apenas e só, constrangimentos.

 

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