28 de Outubro de 2021, exatamente 165 anos depois da inauguração do caminho-de-ferro em Portugal, 143 anos e oito dias depois da entrada ao serviço da Estação da Beirã, eis que me encontro sentado num veículo a pedais da Rail Bike Marvão, estacionado nesta estação, antigo Ramal de Cáceres, para fazer uma viagem de 16 km (8km para cada lado) nesta via férrea, desativada desde 2011.
São 10 h, não há nuvens nem vento, a temperatura é bastante agradável, à volta dos 18º e estou acompanhado por outros aventureiros, do pedal ferroviário, nacionais e estrangeiros.
Desconheço que nome atribui a língua portuguesa a este veículo (Rail Bike) em que os únicos elementos herdados das bicicletas, foram os pedais e os travões de disco.
A curiosidade é muita, até porque sempre sonhei poder andar sobre carris naqueles trolleys movidos por duas pessoas agarrados a uma manivela, fazendo-o avançar nas linhas de comboio, influências da juventude a ver os filmes de Charlie Chaplin em que o ator, num dos seus filmes, impulsionava freneticamente a manivela de um destes veículos na perseguição a um comboio.
A Freguesia da Beirã está intimamente ligada aos comboios, ou não fosse a locomotiva um dos três elementos gráficos, juntamente com uma anta e uma fonte, que constituem a heráldica da Freguesia. Entrou ao serviço em 15 de Outubro de 1878, embora a inauguração oficial só tenha ocorrido em 06 de Junho de 1880. Começou por ser um edifício pequeno, sofreu grandes obras em 1926, altura em que lhe foi acrescentado um restaurante e um hotel e que, em boa hora, foi soberbamente aproveitado, para o mesmo efeito, pela Trainspot Ghesthouse, desde que o ramal foi desativado em 2011.
Não é assim tão comum poder-se pernoitar num edifício já com 95 anos, mas imaculado e com estas características, por um preço apetecível, rodeado de tanta tranquilidade. O antigo restaurante, a atual sala de refeições, está bem decorada, com caixas e malas da época, tudo está bem conservado, sendo de realçar o imponente teto em madeira, o qual por sua vez, serve de suporte ao chão dos quartos no piso superior.
Neste hotel e no antigo restaurante, são bem visíveis a influências do arquiteto Raul Lino, nomeadamente nos azulejos que forram as paredes. Uma estação cheia de história em que, se as paredes pudessem falar, muitas mais estórias contariam. Tudo girava à volta dela, era ali que estava a Guarda Fiscal, os ferroviários e a temida Pide.
Foi ali que Manuel Berenguel Vivas (http://www.cm-marvao.pt/pt/camara-municipal/historico-dos-eleitos), de ascendência espanhola, que chegou a ser presidente da Câmara de Marvão entre 1945 e 1954, dispunha de um ramal particular na Beirã, para desenvolvimento do seu negócio de transportes internacionais. Este empreendedor foi responsável pela construção, em frente à estação, da Igreja da invocação de Nossa Senhora do Carmo, benzida a 16 de Julho de 1944 e para a qual foram transladados os restos mortais do seu pai Manuel Vivas Pacheco e de sua mulher Carmen Berenguel L’Hospitaux. (http://www.cm-marvao.pt/pt/beira/origens)
Anúncio de Manuel Berenguel Vivas publicado na Gazeta do Caminho de Ferro nº 1296 em 12/12/1941)
Em suma diria que esta estação é uma das mais belas de Portugal, não só pela sua arquitetura como pelos fabulosos painéis de azulejos, de Jorge Colaço, que decoram magistralmente a fachada.
Voltemos então à parte recreativa, mas antes de a começar, comecemos pelas voltas que este projecto de lazer deu para aqui chegar. Lenny, o responsável pelo Rail Bike Marvão, é oriundo da Nova Zelândia, nos antípodas de Portugal e necessitou de encomendar as rodas para estes veículos poderem circular em cima de carris, algures no Colorado, nos EUA. Atendendo ao caracter internacional do Ramal de Cáceres, temos que admitir que, mesmo após o seu encerramento, não perdeu o gosto de bem receber e bem servir a comunidade internacional.
Antes de começarmos a dar ao pedal, somos informados das características do percurso e da paisagem e alertados para o atravessamento da ponte com 106 metros de comprimento e 30 metros de altura, sobre a Ribeira de Vide, onde inverteremos a marcha para regressar ao ponto de partida, sem necessidade de recorrer a uma placa giratória ferroviária. Bastam duas pessoas, uma em cada extremidade do veículo, levantam-no e viram-no na direção oposta.
De volta à estação da Beirã
Seguem-se os ajustes das cadeiras para ficarmos na melhor posição para pedalar e, neste caso, como seguiam duas crianças no grupo, foram cuidadosamente instaladas em cadeiras adequadas ao seu tamanho e devidamente amarradas pelos respetivos cintos de segurança. Tudo muito profissional e muito seguro. Sentamo-nos nas cadeiras confortáveis, tipo chaise longue, pés nos pedais, imagino (consigo vê-lo e ouvi-lo no meu subconsciente) um antigo chefe da estação soprar a corneta e fazer sinal com a sua bandeira verde para arrancarmos.
Silenciosamente, ao contrário de um comboio, avançamos todos satisfeitos, para o nosso passeio, afinal o Alentejo é plano e a ferrovia também, qual é a dificuldade?
Para ultrapassar as duas passagens de nível, que neste caso funcionam ao contrário, ou seja, estão fechadas à via-férrea e abertas ao trânsito automóvel, Lenny faz as vezes de guarda das ditas, permitindo o nosso avanço, depois de se certificar que um ciclista cedia, gentilmente a passagem as estes estranhos e muito silenciosos veículos ferroviários, ao qual Lenny fez questão de agradecer.
Eis se não quando começamos a sentir nas nossas pernas , que nem o Alentejo é (todo) plano, nem a ferrovia se estende sem desníveis. Não sendo necessário ser um atleta, os primeiros dois quilómetros do percurso também não são favas contadas, ainda que o esforço seja dividido por dois, eu e a minha mulher.(1)
Atravessando a passagem de nível antes de entrar na Estação da Beirã
Não obstante, fazemos duas paragens para regularizar a pulsação e apreciar a paisagem. Mesmo com o esforço de pedalar, consegui reviver o passado, regressar às sensações de viajar de comboio, a brisa na cara lembrou-me os tempos de juventude com a cabeça de fora da janela da carruagem para receber o vento e o fumo da locomotiva a vapor, ao passar nas fragas recordei o barulho abafado das locomotivas que invadia o interior das carruagens, na ponte a sensação de vazio e o barulho estridente do ferro a ranger com o peso do comboio, nas curvas o chiar das rodas e a trepidação na passagem de cada união dos carris, mesmo com estas rodas de plástico. Até o cheiro que emanava das travessas de madeira, fustigadas pelo sol e pingadas de óleo consegui sentir nesta viajem movida a pernas.
O grande gozo desta viagem, em especial o regresso, em que as pernas descansam e deslizamos quase sempre graças ao desnível, é sentirmo-nos descontraídos, seguros e privilegiados pela diversidade da paisagem, pela tranquilidade do percurso, pelos sons suaves que nos chegam, pelo enorme espaço que nos rodeia, pela liberdade que sentimos e pela simpatia dos safarenhos (2)com quem nos cruzamos.
Tenho a certeza que cada passageiro neste tipo de passeio terá sensações diferentes, consoante o seu apego ou gosto de viajar de comboio, sendo certo que nenhum deles sairá dali insatisfeito. Divertimento, uma coisa diferente, uma experiência, uma brincadeira, uma novidade, tento adivinhar o que possam ter pensado os meus companheiros de viagem. Para mim foi reviver, o comboio dos anos 60 e setenta, e constatar que se trata de uma excelente e agradável iniciativa, tão agradável que estou a pensar em regressar na próxima primavera para fazer o percurso maior, entre a Beirã e Castelo de Vide e quem sabe, aproveitar a sugestão do simpático Lenny da Rail Bike Marvão e fazer também um passeio noturno em noite de Lua cheia.
Interior do restaurante da Estação da Beirã
Uma última curiosidade. A junta de Freguesia da Beirã, refere no seu site , sobre o ramal de Cáceres, o seguinte; No lado português, a extensão deste ramal é de 72,4 Km. manifestamente exagerada para a distância a vencer. A explicação é fácil, embora anedótica: a empresa construtora era paga ao Km e procurou, tanto quanto possível, aumentar a extensão da linha, com infelizes consequências que ainda hoje se fazem sentir. Com efeito, o traçado principalmente a partir de Vale do Peso, é excessivamente sinuoso e, embora levemente corrigido pontualmente aquando da recente renovação, não permite a realização de velocidades elevadas.(https://www.jf-beira.pt/index.php/freguesia/caminhos-de-ferro)
Em baixo o link para as fotos do passeio;
https://photos.app.goo.gl/jEif9L2y1awefQih9
Sugestões finais ao Rail Bike Marvão e ao Trainspot Guesthouse Emitir uns certificados de presença, com o nome dos intervenientes (hóspedes/passageiros) no hotel e no passeio usando o layout da CP da época em que a estação funcionava: Por exemplo:
O Rail Bike Marvão utilizaria o seu logotipo em conjunto com o da CP, com o layout, dos bilhetes da época, “Beirã – Castelo de Vide (Ida e Volta)” com a data e hora e eventualmente o número de um dos comboios que realizavam o percurso, para os seus passageiros dos passeios.
O Trainspot GhestHouse utilizaria o seu logotipo com o da CP e o layout dos recibos das entradas usados no Hotel na época em que funcionou, para entregar aos seus hóspedes.
1 - Relembro o que diz a Rail Bike Marvão sobre isto “Railbike é uma atividade física, as bicicletas não têm motor e todos os participantes devem pedalar. O percurso inclui zonas com inclinação”
2 - Nome étnico usado pelos de fora em relação aos habitantes da Freguesia da Beirã e de Santo António das Areias – Tese de doutoramento “O Falar de Marvão – Património Imaterial Raiano” da Drª Teresa Susana Bengala Simão na Universidade de Évora em Julho de 2015