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Generalidades

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22
Mai21

Ponte 516 Arouca


Vagueando

P5190187.JPG

As pontes servem para transpor desníveis, facilitando a circulação de pessoas e bens. A criatividade humana, não satisfeita com esta útil e nobre missão, começou a embelezá-las, tanto mais que hoje se chamam obras de arte. Foi a arte e a evolução da engenharia que vieram acrescentar beleza e arrojo à utilidade de uma ponte.

Atravessar uma ponte permite-nos experimentar a sensação de voar, ainda que com os pés bem assentes na terra. Por outro lado, as pontes, por vezes, atravessam locais tão fantásticos que nos apetece ficar ali, em cima delas, apenas e só a observar.

Cruzar uma ponte, por norma, não nos deixa nervosos porque confiamos na sua solidez.

Devido à vida apressada que levamos, circulamos nas pontes dentro de um carro, dentro de um comboio, dentro de um barco e até dentro de um avião, sem podermos parar e observar, calmamente, tudo o que as rodeia.

Mas há pontes, exclusivamente dedicadas a peões. Normalmente são mais maneirinhas, mais estreitas, mais curtas, onde nos podemos demorar e que nos oferecem grandes vistas, boas sensações e excelentes fotos, em especial quando atravessam cursos de água, cascatas, barrancos e montanhas.

Quando se junta a beleza de uma ponte à beleza de um local, conseguimos a simbiose perfeita entre o equilíbrio natural e a vida humana. É o caso da recentíssima Ponte 516 em Arouca, sobre o rio Paiva, que junta a beleza selvagem do local com a beleza arquitetónica e técnica da ponte. Juntar estas duas componentes nem sempre é tarefa fácil, mas pelo que vi, a arquitetura e engenharia portuguesa estão de parabéns.

Só se pode atravessar esta ponte a pé, não sei se com os pés bem assentes na terra (já explico), mas é um desafio em cima do desafio que foi construi-la e, simultaneamente, experimentamos uma série de sensações ao atravessá-la.

A primeira sensação é de que não temos chão que nos suporte.

Depois de passada essa desconfiança, vem a segunda sensação, a de que estamos a passear no convés de um navio que navega num mar moderadamente revolto ou a viajar de pé num comboio sem nos agarrarmos a nada.

A terceira sensação, é que estamos presos (suspensos)por arames. Os 129 tabuleiros, são unidos entre si por dois parafusos; um à esquerda e outro à direita, sendo que os mesmos dois parafusos, ligam os tabuleiros aos cabos de aço (catenárias) que atravessem toda a ponte. Ou seja, 258 parafusos, impedem que os tabuleiros, de 4 metros cada, se afastem e em simultâneo, impedem que os mesmos tabuleiros caiam. Dá uma média de 0,5 parafusos por cada metro da ponte. E assim entre balanços laterais, verticais e curiosidades, com mais ou menos nós no estômago, fazemos a primeira travessia.

No regresso, desfrutamos mais a vista, quer para os lados, quer para cima, quer para baixo. Os balanços parecem-nos mais suaves, os canais do nosso ouvido interno já fizeram as pazes uns com os outros, pelo que ficamos imunes aos balanços da ponte o que nos permite maior concentração na paisagem em especial na Cascata das Aguieiras e nos caminheiros que, lá bem em baixo, circulam nos Passadiços do Paiva.

Algumas aves que se aproximam de nós espantam-se com seres humanos naquelas alturas, naquela altura do dia, porque em nenhuma altura das suas vidas, viram ali alguma coisa sem asas.

Voltemos aos pés bem assentes na terra. A ponte é totalmente suspensa, ou seja está ancorada em dois pilares gigantes de cimento, em forma de A invertido. Cada pé do A, segura duas catenárias formadas pelos cabos de aço onde estão ancorados os tais 129 tabuleiros de 4 metros cada.

A questão aqui é que os pilares em A invertido, não têm os pés assentes na terra e, por outro lado a cabeça do A está enterrada na terra.

Assim, digo eu, o A está como a avestruz com a cabeça enterrada na areia. Será que o A invertido, a primeira letra do alfabeto nem tem coragem de ver o que está a fazer? Será que os dois pilares (ainda se fosse só um) não confiam em si próprios? Se a única coisa que liga a ponte a terra é a cabeça dos dois A, quando atravessamos a ponte podemos dizer que caminhamos com os pés bem assentes na terra?

Atravessei a ponte a pensar numa crónica recente do professor Marco Neves – Quem inventou a letra A. Explica a origem da primeira letra do nosso alfabeto. Curiosamente, o desenho da letra A deriva do desenho do A invertido que correspondia à forma de desenhar um touro. Também a letra fenícia aleph (palavra que significava precisamente «touro»), está na origem da forma que demos ao nosso A.

Ora se um touro é forte, e se se escolheu uma letra forte para a primeira letra do nosso alfabeto, logo o A, ainda que de pernas para cima, é forte e seguro. Está equiparado a um trapezista que, pendurado pelas pontas dos seus pés, de cabeça para baixo, segura a sua companheira de espetáculo enquanto esta executa uma série de exercícios, também eles arrojados, sem nunca a deixar cair.

Foi por isso que a engenharia, mais dada a números e cálculos matemáticos, se ancorou na primeira letra do alfabeto, ainda que a virado de pernas para o ar, para segurar a mais bela ponte do país e a maior ponte suspensa do mundo.

Apenas uma sugestão ao visitante, antes de entrarem na ponte pensem que estão no médico quando este vos pede para abrir a boca e o obrigam a dizer "a,a,a,a,…”, para que possa observar a garganta. Quando entrar na ponte, diga mesmo “a…”, ou ah de espanto, fique de pernas para o ar, e desfrute.

A ponte, sem palavras e sem legendas, apenas imagens, aqui em baixo;

https://photos.app.goo.gl/4wb6qM2u7SMb3XfY7

 

 

03
Mai21

O Que se Passa de Noite


Vagueando

Nota Prévia; O texto abaixo não é da minha autoria. No final encontrarão detalhes sobre o autor e sobre o livro.

 

Uma das noites da semana passada, à hora em que as ervanárias e os majores reformados estão dormindo a sono solto e só giram pela cidade os noctívagos, as mulheres de má vida e os “chauffeurs” de “side-cars”, realizou-se uma assemblea geral das ruas de Lisboa afim de protestarem, contra o desdém ao qual têm sido votadas há tempos a esta parte pelas sucessivas edilidades que se têm sucedido no Município.

Compareceram quási tôdas as praças, largos, avenidas, ruas, calçadas, travessas e becos desta cidade de Ulisses, e o Castelo, na sua qualidade de mais idoso, assumiu a presidência, secretariados pela praça do Comércio, que representava todas a s forças vivas, e pelo Rossio, que representava os elementos avançados.

 A assemblea era variadíssima. A um lado as artérias aristocráticas, as avenidas Duque de Loulé, do lado do Conde de Valbom, o Largo do Marquês de Tancos, etc., conversavam com as ruas ricas, como as do Capelistas. O Conde de Redondo, palestrava com o Bairro Alto acêrca de mulheres. O largo da Graça dizia piadas à praça da Alegria e a um canto, a travessa do Fala-Só falava com os seus botões. Vários campos; o de Santa Ana, o de Ourique, o Grande, trazendo o pequeno pela mão, discutiam animadamente, enquanto o das Cebolas se mantinha de parte, devido ao péssimo cheiro que exalava, conversando apenas com ruas sopeiras: a rua Palmira, a rua Maria, etc. A Madalena declarava-se arrependida de ter vindo. A rua da Fé confiava absolutamente nos resultados da assemblea.

Por fim o Castelo agitou a campainha e declarou aberta a sessão.

– Minhas senhoras e meus senhores! Há muito tempo que lavra…

– Presente! – Exclamou do fundo da sala o elevador, que vinha encarregado de apresentar as desculpas das escadinhas, impossibilitadas de comparecer por falta de calcetamento.

– Não é de v.exª. que se trata – explicou amavelmente o presidente – Há muito tempo, repito, que lavra entra as ruas de Lisboa uma profunda indignação contra incúria dos municípios. Durante anos, esperaram vir a ser atendidas nas suas justas pretensões…

– A quem v.exª. o diz – interrompeu a travessa da Espera.

– Vemos, porém, que os senhores edis cada vez menos se preocupam connosco. A falta de água, por exemplo, chegou ao seu limite.

– Apoiado! – gritaram em côro o largo da Oliveirinha, a rua das Parreiras, a da Vinha, o largo da Amendoeira e o das Amoreiras.

– Eu, devido à falta de regas, estou neste estado – exclamou a Horta Sêca.

– E eu? – acrescentou o Jardim do Regedor – De não ser regado há séculos, não me crescem outras flores senão mal comportadas e batoteiros.

– A miúdo, – continuou  o presidente – lemos nas gazetas que se vão dar providências.

– Eu cá, só vendo, acredito – murmurou S. Tomé.

– Não posso ver isto com bons olhos – murmurava a rua da Inveja.

– Também eu – acrescentava a travessa do Cego.

– O certo é que todos os verões a sêca é terrível e tudo se complica, se acaso há um incêndio.

– Ponham os olhos em mim – bradou a travessa da Queimada.

– Promessas e mais promessas e nunca se passa disso – exclamou do fundo da sala a rua do Passadiço.

– Realmente, é preciso ter uma paciência de Forno – concluiu o respectivo beco.

– Noutros tempos…

– Perdão – interveio a Avenida da República – Será melhor não querer fazer política na assemblea.

– Apoiada – gritou a Avenida 5 de Outubro.

– Noutros tempos, – continuou o presidente – não há dúvida que tudo corria de outra forma…

– Muito bem – concordaram S. Mamede, Santa Marta, S. Bento, S. André e S. Pedro de Alcântara… (começa no início da página 86).

– Fora os talassas ؘ– gritavam do fundo da sala.

– Ordem! Ordem! – suplicava a rua da Paz.

– Certas coisas não eram toleradas – insistiu o Castelo.

– Isso é piada para mim? – perguntou a travessa das Salgadeiras.

– Não foi minha intenção referir-me a V.Exª.– explicou o Castelo.

– Será bom haver tento na língua, que eu á estou de atalaia – aconselhou a rua da Barroca,

– Parte-se-lhe a travessa da Cara – propôs todo Gingão, o beco do Quebra-Costas. A assemblea começava a agitar-se. Um chôro convulsivo de criança ouviu-se para um canto. Era a rua da Infância assustada com o barulho. A calçada de S. Francisco fazia gestos desordenados. O presidente agitava desesperadamente a campainha. Puséram S. Vicente de fora, e pouco a pouco, a calma renasceu.

– Outro motivo de queixa nosso, – continuou o presidente – é alteração de nomes a que foram sujeitas muitas das aglomerações de Lisboa. Algumas ruas que eram conhecidíssimas, passaram a ser verdadeiros problemas. Ruas fêmeas passaram a ser machas, travessas machas passaram a ser fêmeas. Até parece mal em certos casos. Dá que falar aos becos da vizinhança.

– Eu cá, – explicou o Forno do Tijolo – passei a ser Angelina Vidal.

– E eu, – acrescentou a Madre de Deus – sou agora Manuel Bernardes.

– Só o que falta – bradou a rua da Rosa – é que ainda me chamem rua do Barbosa …

– Está tudo maluco – comentava a meia voz a travessa de Rilhafoles.

– Já não há religião, minha boa amiga – explicava a dos Fiéis de Deus.– E muita falta de patriotismos – acrescentava o Campo Mártires da Pátria.

– EU só quero ouvir falar de um certo número de coisas, estou que nem pólvora – resmungava a rua do Salitre.

– <À noite a iluminação é precária. De dia ainda a coisa escapa…

– Não há dúvida – comentou a rua do Sol.

– Mas, mal anoitece, há entre nós quem não consiga ver um palmo diante do nariz e se transforme em valha –couto de gatunos de assalto. É uma vergonha. A respeito de limpeza de vassoura, temos conversado.

– Peço a palavra sobre o assunto – requereu a rua das Pedras Negras.

Quanto a obras e canalizações é um inferno. Sei de algumas colegas a quem deixam meses e meses de barriga aberta. Outras estão por concluir. Outras levaram anos para chegar a seu têrmo.

– Menina e moça, – explicou a rua Bernardim Ribeiro – me levaram da Sociedade Farmacêutica até Gomes Freire… Pois ainda não tenho os prédios todos.

– Explicam os vereadores dos vários pelouros, – continuou a presidência – que tudo são questões de dinheiro. Os cofres estão exaustos, os funcionários e operários cada vez reclamam mais ordenado e férias. Ora nós não temos nada com isso. Se querem que continuemos a deixar-nos pisar, hão-de nos tratar com toda a consideração. Pretendemos ser varridas, regadas, iluminadas, policiadas, concluídas. Proponho, pois, que se dê um prazo para que as nossas pretensões sejam atendidas. Terminado que seja, levantar-se-ão as pedras das calçadas. Faremos sabotagem da planta da cidade.

O Atêrro passará para o Campo Grande, o beco do Monete virá para o lugar da rua do Ouro, o Chiado mudar-se-á para Campolide, na rua Fresca haverá calor, a rua do Meio desviar-se-á para o lado e o ministério do Trabalho encontrar-se-á de-repente no Cata que farás. O Alto do Pina pôr-se-á de cócoras…

Aqui o largo das Necessidades pediu licença para ir lá dentro.

– A rua da Emenda – continuou o orador – ficará pior que o soneto, o Calhariz deixará de estar à Bica etc. etc.

– E, se estabelecêssemos um governo militar, sob a presidência da Praça Duque de Saldanha? – propuseram as ruas dos Defensores de Chaves , dos Heróis de Quionga e dos Vencedores de Naulila?

– Não está mal a descoberta – comentaram as ruas Vasco da Gama, Bartolomeu dias e Diogo Cão.

– Acho preferível, – propôs com o seu reconhecido bom senso a Conceição Vélha –  organização de um ministério de competências, que podia ser o seguinte:

Interior – Chafariz de Dentro.

Comércio – Ruas dos Bacalhoeiros.

Guerra – Rua 4 de Infantaria.

Marinha – Rua do Arsenal.

Instrução – Travessa das Escolas Gerais.

Estrangeiros – Ferregial de Baixo.

Finanças – Rua Pedro Cem.

Colónias – Rua das Pretas.

Posta à votação a proposta, foi aprovada por unanimidade e a sessão encerou-se com uma grande salva de Ruas Novas das Palmas. O Largo de Andaluz dançava à espanhola, o beco do Imaginário nunca imaginaria que corresse tão bem e a rua António Pedro encolhia os ombros, murmurando:

– Calhou!

Este conto faz parte de um livro de bolso, Colecção Civilização, nº 34 - Série Amarela, com o título Contos Escolhidos Humorísticos. Foi composto e impresso, em 1937,  na Tipografia e Encadernação "A Portuense", na Rua de Vizela, 80 - Portto.

Autor André Brun, nascido em Lisboa, na Rua do Salitre em 1881.

A ortografia deste conto é a que consta do livro.

 

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