É mais fácil provar hoje uma queijada, do que provar quando é que ela apareceu, quem é que a provou em primeiro lugar e que mãos é que provaram ser capazes de ter a arte e a mestria de as confecionar pela primeira vez.
Quando as queijadas viram a luz do dia, por volta do Século XIII, seria mais difícil prová-las do que perder tempo a provar a sua existência e provar a sua qualidade. Não existia nem certificações, nem selo de qualidade que as distinguisse.
Se isto é o melhor que a inovação e a excelência, que tanto nos apregoam consegue provar, prefiro ficar a sonhar com o velho pregão nas feiras e nos campos da bola (não confundir com estádios) “Olha a bela queijada de Cintra”.
Pode ser que a Inteligência Artificial consiga, finalmente e em simultâneo, fazer do acto de provar uma queijada, mais do que nos culpar pelo pecado da gula, e de estarmos a dar cabo da nossa saúde (1) , um facto historicamente comprovado. Como? Ao desembrulhar doucement (não abrir, nem rasgar) o pacote de queijadas, receber aquele aroma da canela, sentir o desejo irresistível de trincar um qualquer daqueles 6 bolinhos redondos, protegidos pela fina casca, olhar para o papel que as envolvia e perceber que o papel (quiçá reciclado)que lhe coube, foi o de nos fazer ver no espaço por cima de nós, com todos os holofotes apontados, a história da queijada em 3D com som Dolby Digital.
Os holofotes existentes na casa das Verdadeiras Queijadas da Sapa (ver foto no link abaixo)
A História tem os seus métodos para datar e comprovar a ocorrência de acontecimentos passados, ainda que alguns acontecimentos passados custem muito mais a engolir do que uma bela queijada.
Tanto quanto se sabe as queijadas serviram de moeda de troca entre 1227 e 1586. A título de exemplo o Casal do Rebolo em Almargem do Bispo foi arrendado ao Convento da Trindade em 1481 por cem alqueires de trigo (2), noventa de cevada, um porco de dois anos e uma dúzia de queijadas. Assim parece que as queijadas antes de serem produzidas para venda, constituíam reserva de valor, servindo como de moeda de troca em negócios.
Se naquela altura o Banco Lisboa, o primeiro a operar em Portugal, inaugurado em 1821, já existisse, aceitar-se-iam depósitos em queijadas, dentro prazo de validade, bem certo. Seria certamente denominado como o Banco Doçaria Boa (convém rimar com Lisboa para não trair a História) e teria, se calhar, uma vida mais longa que este banco, uma vez que em novembro de 1846 se fundiu com a Companhia de Confiança Nacional, sociedade de investimentos especializada em dívida pública e que mais tarde deu origem ao Banco de Portugal. Uma curiosidade de cariz ambiental. Há 175 anos atrás, o papel existente em armazém no Banco de Lisboa, foi integralmente aproveitado pelo Banco de Portugal para embrulhar as queijadas. Não! Foi aproveitado para imprimir, até 1875, notas mas com a marca de água do extinto Banco de Lisboa. Quem sabe se a ideia do Banco Doçaria Boa, cujos activos fossem suportados em queijadas, se hoje não teríamos bancos doces, mais valiosos, mais seguros e mais éticos que os de hoje.
As queijadas terão nascido – parece que ninguém sabe, sou eu a fazer de adivinho - ali para as bandas do Algueirão, eram fabricadas de forma artesanal, por vários particulares e vendidas em feiras e mercados, um pouco por todo o lado de Lisboa a Sintra.
Maria Sapa, estabelece-se em Ranholas em 1756, momento que terá sido o início da produção industrial de queijadas, com uma produção diária de vinte dúzias, as quais vendia aos fidalgos que se dirigiam a Sintra, no estabelecimento que se chamava Ramalhãozinho.
Ranholas era e de alguma forma ainda é, a porta de entrada rodoviária em Sintra, pelo que tinha tudo para ser um bom ponto de venda. Não existia proibição de estacionamento a cavalos, nem ocorriam constrangimentos de trânsito cavalar, devido ao estreitamento da via, aos limites de velocidade baixos, nem existiam passadeiras de peões, pelo que estavam reunidas as condições para que a Sapa fosse uma queijadaria de excelência, quer do ponto de vista do produto, a queijada como core business, e do ponto de vista comercial, porque era casa frequentada pelos mais distintos fidalgos. Ranholas foi também o ponto de passagem para o primeiro comboio que chegou a Sintra, o Larmanjat, inaugurado em 02 de Julho de 1873.
Inauguração do Larmanjat em Sintra (ver foto no link abaixo)
Horário do Larmanjat em 1873 (ver foto no link abaixo)
O comboio vinha do Rego até Cintra com paragem na Porcalhota, onde os aguadeiros e as vendedeiras faziam o seu negócio durante esta paragem. Não era bem um comboio porque só dispunha de um carril central, que servia para o direcionar, e os rodados assentavam em cima de travessas de madeira. Maria Sapa, já não viu este comboio, mas se tivesse visto não sei qual seria a sua reação ao ver os seus habituais fidalgos todos aperaltados , desembarcarem daquela geringonça, em vez de desmontarem dos seus cavalos, para comprarem queijadas no Ramalhãozinho.
Ainda que a produção de queijadas em Ranholas continuasse, o Larmanjat durou apenas até 1877, devido aos muitos descarrilamentos. O caminho de ferro não desistiu de Sintra, pelo que em 1887 o comboio a vapor chegou à Estefânia. Ranholas deixou de ser a porta privilegiada para entrar em Sintra, devido à chegada do comboio.
As queijadas de Maria Sapa, mudam-se para a Volta do Duche, onde ainda estão hoje. Sem sombra de dúvida, de todas as marcas de queijadas conhecidas, a Sapa é a mais antiga e, sendo a mais antiga, começou logo a ser inovadora. Os tão na moda kiosques, food trucks, roulottes, que animam hoje o chamado mercado de street food, que se apelidam de vintage que vendem comida gourmet, são-nos apresentados como uma grande inovação, deviam de ter vergonha porque não inventaram nada. Podem ser vintage, podem ser gourmet ou lá o que isso é, mas não são inovação. Inovação foi no tempo de Francisco Antunes das Neves, descendente dos Sapa, avô de conhecido Francisco Barreto das Neves, que tirou a licença nº 763, para poder circular com um veículo de duas rodas, de eixo fixo, puxado por uma cavalgadura, ou seja uma carroça, com a qual percorria vários locais de Sintra a vender as queijadas que fabricava.
Depois desta lição de história vou centrar-me na descrição épica da viajem da Casa Sapa, de 2,2km, entre Ranholas e a Volta do Duche.
Comecemos por Ranholas. Ao contrário do que muita gente pensa o nome Ranholas nada tem a ver com ranho, quanto muito tem a ver com ranha. Não, não comecem já a pensar em igualdade de género, se existe ranho tem que existir ranha. Ranholas será o diminutivo de ranha e ranha é um termo minhoto que designa declive no leito de um rio rápido. Quem passa em Ranholas em dias de muita chuva, constata facilmente que a estrada que atravessa a localidade se torna num verdadeiro rio com um declive significativo. Dai parecer fazer sentido, que o nome da localidade derive da palavra ranha.
Sair de Ranholas para a Volta do Duche, não há volta a dar é a subir. Não faço a mínima ideia por onde passaram os tarecos das queijadas Maria Sapa até chegar à Volta do Duche, mas especulemos um pouco.
Presumo que terá seguido logo pelo caminho em frente à casa, rua do Alto da Bonita, (em cujo alto, haveria alguma bonita ou só a vista é que era bonita), depois Chão de Meninos, talvez porque o chão dos meninos fosse mais macio e por isso mais adequado ao transporte dos utensílios de culinária, sem os partir, depois seguido pela Rua Albino José Batista, entroncar na rua Rodrigo Delfim Pereira, apanhar o caminho a descer da Alba Longa (3), fazer uns parcos metros na Rua Conde Seisal, virar à direita para a rua das Murtas, beneficiado do aroma a laranja que esta planta liberta e no fim, virar à esquerda na Rua João de Deus e, com a graça de Deus, desembocar junto à estação de caminho-de-ferro, recentemente inaugurado.
Daí até ao local onde hoje se encontra terá sido um pulinho.
Chegada à Volta do Duche, depois de tanto esforço, nada mais retemperador que um banho nos duches medicinais da Volta do Duche instalados em 1848 pelo médico Bernardino Silveira e Castro, altura a partir da qual a estrada entre a Vila Velha e a Estefânia, passou a chamar-se Volta do Duche. Estes banhos foram mais tarde propriedade de António Pereira que teve que os encerrar por falta de procura, ficando conhecido por Pouca Sorte. Melhor sorte teve as queijadas da Sapa, ainda hoje são um testemunho vivo que sobreviveu à voragem dos tempos modernos, constituindo-se assim como um símbolo histórico de Sintra e simultaneamente, uma marca respeitada e afamada.
Falemos agora do termo SAPA. Sapa designa uma pessoa de baixa estatura mas também designa uma pá usada pelos soldados para cavar/abrir trincheiras. Os militares encarregues de tal missão executavam o trabalho de sapador com esta pá, que tem a particularidade de possuir no topo, duas abas laterais que serviam para se poder calcar e assim cravá-la mais facilmente no chão facilitando a abertura da trincheira.
Antiga Pá de Sapa militar (ver foto no link abaixo)
Maria Sapa e os seus descendentes, foram verdadeiros sapadores. Não por terem aberto uma trincheira, mas sim por terem aberto uma ligação histórica entre Ranholas e a Volta do Duche usada ainda hoje, para chegar rapidamente à Volta do Duche e à Verdadeira Fábrica de Queijadas da Sapa.
Na próxima vez que visitar a Sapa, leve o pacote de queijadas até uma mesa, aconchegue-se na sala, olhe para o palácio, respire fundo, desembrulhe o pacote de queijadas, fixe as luzes por cima de si e voilá; Está presente a ver o passado, está em Ranholas. Esqueça que o ticket de estacionamento só dá para meia hora, já que está no passado desfrute-o. Viajou no tempo, aprendeu como nasceram as queijadas, fez uma viagem no Larmanjat, passou no Ramalhãozinho, veio de Ranholas à Volta do Duche e, de repente, regressa a actualidade e, ainda há uma queijada na mesa. Meio atordoado come-a de imediato e constata que lhe soube melhor que todas as outras.
Não viu nada? Pois, não será um verdadeiro apreciador das verdadeiras queijadas da Sapa ou terá que consultar um especialista, um queijadólogo, mas acredite que o problema é seu. Pelo menos é o que me dizem todos os que já viram o raio verde (4) quando o sol se põe no mar em condições muito especiais . Eu nunca vi!
Link para as fotos https://photos.app.goo.gl/BtB3UjFpRyX692gD6
Este texto mistura ficção com realidade, história com estórias, coisas sérias com coisas parvas. Para bom entendedor, é fácil perceber que a parte parva pertence ao autor e as partes sérias a diversas consultas, quer na Internet, cintraeoseupovocintraseupovo.blogspot, quer às magníficas obras de José Alfredo da Costa Azevedo, antigo presidente da CM Sintra.
(1) Sobre saúde não resisto a citar José Alfredo da Costa Azevedo que no seu livro “Apontamentos Vários” termina o seu capítulo “Queijadas” desta forma; Termino fazendo votos sinceros para que o belo doce sintrense continue a ser fabricado de forma a que não desmereça a fama que criou e faça muito bom proveito àqueles que o podem comer. Eu cá ficarei a rogar pragas à maldita diabetes.
(2) Para os mais esquecidos ou eventualmente mais novos os principais padrões do alqueire usados em diferentes regiões de Portugal no século XIX eram os seguintes:
- 13,1 litros no litoral entre Aveiroe Lisboa
- 13,9 litros, um pouco por todo o país
- 14,9 e 15,7 litros, sobretudo no interior e no sul
- 17,0, 17,5 e 19,3 litros, quase exclusivamente no Entre-Douro-e-Minho
(3) Alba significa aurora, primeira luz da manhã. Antes da densa vegetação envolver Sintra seria possível beneficiar neste caminho de uma nascer do sol durante bastante tempo, daí a designação de Alba Longa.
(4) O Raio Verde, popularizado pelo romance de Júlio Verne com o mesmo nome. É um fenómeno meteorológico, muito rápido, que pode ocorrer ao pôr-do-sol, sob condições muito particulares de tempo. É mais frequente no mar e só pode ser observado se o horizonte estiver sem qualquer neblina. Não obstante, não basta não haver neblina é necessário que os valores de temperatura e humidade atinjam determinados parâmetros que desconheço