A casa dos meus avós
Vagueando
Guardamos da infância os melhores momentos da nossa vida. O que parecia mau e que não era afinal assim, parece-nos agora normal. A vida amadurece-nos, deixamos de ver só para a frente, passamos a ver ao lado e depois até atrás e finalmente a 360º.
A casa dos meus avós respira amor, ternura, nostalgia, fala sem saber línguas, sem ter boca, mostra-se sem possuir uma tela ou ecrã onde possa explicar o que viveu. Não tem emoções, mas desperta reações emotivas, contidas ou quem sabe extrovertidas.
Chegar aqui, onde vivemos parte da infância, perder a conta aos ainda poucos anos que ainda contámos, quando ela,casa, tem mais de cem anos bem contados é como mergulhar na história familiar sem perceber.
É estranho, é fantasmagórico, é surreal mas também é tonificante. As cenas que guardo são dispersas e impedem-me de alimentar uma história que dignifique a obra feita.
Como se pode contar a história de mais de cem anos contados sem saber tudo o que contar, não estive lá sempre a observar. Que estórias guardou esta casa, que estórias pode contar?
As gerações que por aqui passaram antes de deixar a vida, deixaram suor, lágrimas, alegrias e tristezas, muito por desvendar, histórias que não se encontraram com o papel ou com o computador para alimentar a memória dos que ainda cá estão e dos que virão.
Mas está cá tudo, não se tapou, nem se enterrou nada. Descobriu-se as paredes, estão à vista, mas o que ainda estará invisível? É necessário paciência, igual à que já houve e maior do que a existente para desvendar, ou melhor deixar em papel, o que lá está e o que lá esteve.
Cada uivo do vento, cada bater de porta, cada ranger das dobradiças, cada estalo da fechadura, são sons que nos habituámos a ouvir e a sentir. Cada passo, cada porta que se abre ou se fecha, por nossa iniciativa ou pela força do vento, trazem sempre recordações e sentimentos.
Cada dia, cada noite, desfiam os momentos, alentos e tormentos, discussões sobre o solo do pão e o solo da terra. Se o primeiro se queimava porque as tocas não eram bem molhadas e o forno era mal varrido, o segundo era, nem mais nem menos, o barro vermelho que torrado ao sol se transformava em poredo, que nos sujava, quando suados, caminhávamos nas veredas e transpúnhamos os valados existentes.
Estou aqui agora a escrever e a ouvir sons que já não existem mas que se sentem. As ovelhas no palheiro, a mula a bater os cascos com fome, os pintainhos atrás das galinhas que escramalhavam o milho que secava no eirado. Os porcos que roncavam, ansiando por tremoços e pelas farrobas que secavam ao lado do milho no mesmo eirado.
Ouvem-se passos e vozes do tio Zézinho, da tia Catrina, da prima Lurdes, do primo Manel e da Géninha. A velocidade do som faz com entre rapidamente em casa pelo lado Sul, para conversas animadas e divertidas. Eventualmente combina-se uma ida à praia, de carroça, logo cedo para escapar à calma do meio do dia.
Ouço os sons das muitas carroças a matraquilhar as pedras das veredas e das estradas de terra, pedra e buracos, que eram mais caminhos de cabras. Já não se vêm carroças, nem malhins a brilhar, nem tão pouco os condutores a apertar os breques nas descidas para não forçar os animais a segurar aqueles carros pela barrigueira.
Estou aqui a matutar enquanto descanso e a ouvir, mesmo já surdo, quem dizia que a louça estava em número um, ou que um homem atrapalhado é pior que uma mulher bêbeda. Oiço discussões por causa das regas, das ovelhas, dos marcos, que também são conhecido por mogos. As mesmas terminam em paz nas conversas ao jantar composto por cozinha de batatas, carapaus alimados, azeitonas, presunto, requeijão, queijo de cabra, pão e a salada com pepino, tomate e alface.
Ouço a mota do pexeiro e sua buzina de fole. Traz peixe, alegadamente, fresco de Almufeira e também seco pelo sol e pelo sal, que não se vendeu nas voltas e dias anteriores.
Sentem-se os cheiros, dos chouriços, dos ovos estrelados diretamente nos pratos de alumínio, dos queijos e requeijões e do palheiro. Misturavam-se na casa como se procurassem a fórmula de um perfume nunca inventado mas que podia ser fabricado. Seria hoje um perfume rural delux. Estou a imaginar, a vender por todo o lado, sempre acompanhado de slogans publicitários que o fariam sentir-se idolatrado.
Nesta altura até parece que a casa está assombrada, não está, mas é um assombro que poucos conseguem ver, sentir, conhecer, fruir e admirar.
A falta de luz elétrica, um mal da época, com o calor do Verão permitia-me dormir na rua com as estrelas como lençol, identificar as constelações, a estrela polar e a via láctea.
Era a falta de desenvolvimento o desinteresse pelo mundo rural, a falta de expectativas, era trabalhar para a subsistência. Os anos passados, ainda que já contados, não contam os mais de cem anos desta casa.
Recomenda-se o uso de um dicionário de termos algarvios para entender melhor a história ou a estória.
Os nomes foram ficcionados.